De um lado, o impulsivo Evo Morales, 46 anos, ex-líder sindical e cocalero (plantador de coca), empossado no cargo de presidente da Bolívia no domingo 22, depois de uma acachapante vitória no primeiro turno das eleições presidenciais de 18 de dezembro do ano passado, com 54% dos votos. Do outro, Alvaro García Lineras, 43 anos, um intelectual branco, de família de classe média, com mestrado em matemática pela Universidade do México, autodidata em sociologia, analista e comentarista político da televisão boliviana e considerado por muitos um verdadeiro gênio. Essa mistura é que deverá governar, nos próximos cinco anos, a Bolívia, um país dono de gigantescas reservas de gás natural e índices de pobreza e concentração de renda comparáveis aos das mais pobres nações africanas.

A aliança foi formada em agosto do ano passado, quando Evo Morales, liderava o Movimento ao Socialismo (MAS), o partido de maior penetração popular no país, e se destinava – como ocorreu, por exemplo, no Brasil, quando Luiz Inácio Lula da Silva escolheu para seu vice em 2002 um empresário conservador ligado então ao PL – a tornar mais palatável à classe média e às elites brancas da Bolívia a ascensão de um indígena da etnia aimará ao poder. Mas as semelhanças entre as duas chapas, que, ao final, foram vitoriosas, não passam disso. Alvaro, como os bolivianos o chamam, além de intelectual, tem um passado de extrema-esquerda que nunca freqüentou sonhos ou pesadelos de Alencar. Em 1992, aos 30 anos, entrou para o Exército Guerrilheiro Tupak Katarí, grupelho comandado pelo líder radical indígena Felipe Quispe. O movimento foi reprimido com violência, Alvaro García foi preso, torturado e depois jogado na prisão durante cinco anos. Livre em 1997, começou a atuar como analista político e a dar aulas em várias universidades do país. Acabou representando para o MAS a cereja que faltava no pudim de coca que empolgou os bolivianos. Afinal de contas, além da vitória massacrante para a Presidência, o MAS ganhou 72 das 130 cadeiras da Câmara de Deputados, e 12 dos 27 senadores. E ficou com a presidência das duas casas legislativas e do Congresso, esta exercida pelo próprio Alvaro, como vice-presidente.

O papel diferente dos dois líderes na difícil tarefa de governar um país que muitos consideram ingovernável começou antes da posse. Avesso ao protocolo, especialmente ao terno e gravata – que evitou até na posse –, Evo fez um giro pelo mundo, passando por Venezuela, Cuba, Europa, Ásia, África e finalmente Brasil, vestindo uma chompa de largas faixas coloridas – uma espécie de suéter de lã de alpaca (animal andino parecido com o lhama). Foi criticado pela imprensa de vários países, mas apoiado pelo escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, que defendeu o direito de Evo de não usar uma vestimenta européia. A discussão transformou a chompa em sucesso de vendas na Bolívia. Já o vice, Alvaro, fez um périplo interno, contatando as lideranças locais, incluindo as que ainda restaram da oposição. Um dos poucos países visitados pela dupla em conjunto foi o Brasil.

A sutil influência de Alvaro García e de outros intelectuais (indígenas ou não) que cercam Evo Morales já foi notada na seqüência de discursos que o líder dos bolivianos fez nos últimos dias. Ele começou a semana que antecedeu a posse falando em expropriação de empresas estrangeiras e ações radicais. A cada dia, o tom foi ficando mais próximo dos quase didáticos discursos de Alvaro, incluindo o que fez durante a emotiva solenidade indígena nas ruínas de Tiwanaku, civilização que antecedeu os incas. Finalmente, Evo Morales chegou ao discurso de posse no Congresso, onde alinhavou as orientações do seu governo.

A posse dos recursos naturais – gás natural, principalmente – foi enfatizada. Mas o presidente destacou que quer as empresas estrangeiras como sócias do governo boliviano. Para o Brasil, o discurso foi tudo o que se queria ouvir. “Petrobras e Bolívia se necessitam um ao outro”, garante o presidente da estatal brasileira, Márcio Gabrielli. É preciso esperar. Na quinta-feira 26, Jorge Alvarado, presidente da YPFB (estatal de energia) disse que pretende estatizar as refinarias do país, começando pelas duas administradas pela Petrobras.