Criado no Leblon e morando em São Conrado, bairros da alta classe média carioca, o cirurgião plástico Adaías Vieira tinha tudo para manter uma distância asséptica do mundo popular carioca. Os colegas de jaleco jogam golfe, ouvem música clássica e, como ele, garantem as receitas de seus consultórios com a vaidade das socialites da zona sul, com suas lipoesculturas e próteses de silicone. Mas foi no samba feito no morro que o médico e o monstro se encontraram. “Sou louco por Carnaval”, diagnostica Adaías, que, de bloco em bloco, de escola em escola, se tornou vice-presidente da Acadêmicos da Rocinha – a escola de samba da favela de 130 mil habitantes debruçada sobre sua casa. O que todos invejam, porém, é seu cargo informal: é o “descobridor” de mulatas da agremiação. Nenhuma beldade sobe em um carro alegórico sem passar por seu crivo. O carro abre-alas da Rocinha entrará este ano na Sapucaí com 67 mulheres pinçadas pelo caça-talentos. Elas vêm da favela, da academia de ginástica que ele freqüenta ou são escaladas na praia. “Não escolho modelos, mas mulheres que agradariam a qualquer homem”, receita Adaías – na avenida, conhecido como Dida –, que tem entre suas “descobertas” a passista Sabrina Alves, 27 anos, nascida e criada no morro.

Com precisão cirúrgica, Luiz César Martins, 40 anos, “30 de samba” e 15 como afinador de instrumentos na Rocinha, gira a chave, apertando e soltando os parafusos na borda do surdo. Repete até deixar todos com a mesma pressão, o mesmo som. “É preciso apertar em cruz, senão estraga as peças e aleija o instrumento”, ensina. Confinado na sala de manutenção de peças da quadra da escola, Bolacha, nome de guerra, bate de leve com a baqueta na borda dos parafusos. “Toda a harmonia está ligada a uma boa afinação”, explica, diante de uma montanha de tamborins, caixas, repiques e surdos. Ligado à escola desde que se tornou ritmista do Império da Gávea, um dos três blocos que, em março de 1988, se fundiram na Acadêmicos da Rocinha, Bolacha é quase uma lenda entre seus pares. Na avenida, é outro ilustre desconhecido que corre para lá e para cá, manivela na mão, dando a última ajustada no som da bateria.

Com todo o abismo social que os separa, e o amor pelo samba que os une, Dida e Bolacha, o cirurgião e o afinador, são soldados do mesmo exército de anônimos que, uma vez por ano, longe dos holofotes, constrói, detalhe por detalhe, o maior espetáculo do mundo – transmitido ao vivo para 60 países e 300 milhões de espectadores. Contratados ou voluntários, profissionais com funções tão diversas como o afinador e o caça-mulatas, a costureira e o projetista de carros alegóricos, o diretor cênico e o administrador de barracão juntam seus talentos para preparar um pequeno ou grande detalhe que fará toda a diferença. Nos barracões e nas quadras de três das 14 escolas do Grupo Especial – Mangueira, Mocidade Independente e Acadêmicos da Rocinha, que acaba de subir para a elite do samba – ISTOÉ testemunhou como, no meio dessa linha de montagem cada vez mais profissional, o estandarte do sanatório geral continua passando.

“Sem eles, a gente não conseguiria nem sonhar”, reconhece um empresário que vive do Carnaval, o presidente da Acadêmicos da Rocinha, Maurício Mattos. O sonho deste ano, marcado para os dias 26 e 27 de fevereiro, a um custo estimado em R$ 60 milhões, movimenta mais de três mil pessoas nos 14 barracões da recém-erguida Cidade do Samba, no Centro do Rio – o imenso estaleiro do Carnaval carioca –, além de um número incalculável em cada uma dessas comunidades. “Vocês não sabem quantos grandes artistas estão no backstage”, avaliza o cirurgião Adaías, que comanda 300 pessoas dentro do barracão 3 da Cidade do Samba, um formigueiro de talentos que somam forças para pôr na Sapucaí um enredo que parece o tema desses ilustres anônimos: “Felicidade não tem preço.”

“Vencedor de todas as lutas, com consciência do dever cumprido, agradecemos a vós, minha protetora”, diz trecho da Oração a Santa Bárbara pregada na porta da sala das costureiras da Rocinha. “Você tem certeza de que é comigo que quer falar?”, duvida a cearense Marta Mesquita, 68 anos, aproveitando uma rara pausa. Costureira há três décadas, mãe de quatro filhos e avó de dois netos, dona Marta faz parte de um grupo de seis mulheres que há dois meses trabalham das 9 h às 19 h para finalizar pilhas de fantasias que vão enfeitar sabe-se lá que modelo ou atriz. “Vou ficar feliz de ver pela tevê essas moças bonitas desfilando uma coisa que passou pelas minhas mãos”, sorri. “É assim mesmo. A gente não sai em revista, nossas roupas saem”, ensina Lucia Fátima de Lira, a Luluca, 45 anos, gerente do ateliê. Na escola desde sua criação, Luluca escala as “meninas” que vão para a avenida, trabalhar, é claro. “Tem sempre um remendo de última hora”, explica.

Bom humor – Cansado de ver reconhecidos apenas os que brilham na avenida ou na mídia, o pintor Ronaldo Pucchinelli, 43 anos, decidiu criar dentro do barracão da Rocinha o “Estandarte de Lata” para premiar “os anônimos da arte popular do Carnaval”. Uma premiação fictícia, mas bem-humorada, com categorias muito diferentes das do prêmio que a inspirou, o Estandarte de Ouro do jornal O Globo. Ao invés de conferir taças para a melhor Ala de Baianas, Porta-Bandeira ou Bateria, o Estandarte de Lata tem categorias mais subterrâneas. O próprio Pucchinelli venceu no quesito “Pintura de Arte”, empatado com Clécio Regis, da Imperatriz, e Ricardo Cardoso, da Beija-Flor. Na categoria “Iluminador de Carro Alegórico”, deu Cairo, da Portela. O estandarte de “Decorador de Carro” foi para André Cristal, da Rocinha. A “Melhor Costureira” é dona Maria Louca, da Viradouro, enquanto Belizário, do Salgueiro, levou o título de “Aderecista” do ano.

O melhor “Administrador de Barracão”, pelo voto mais que popular, é Jorge Mendes Tourinho, da Mangueira. “Tenho 52 anos de Carnaval, ganhei o campeonato dez vezes, por diferentes escolas, mas é a primeira vez que um jornalista pergunta meu nome”, surpreende-se Tourinho, 65 anos, oito horas por dia zelando pelo barracão da verde-e-rosa. Romário, da Porto da Pedra, foi o melhor no quesito “Ferragem” e Edson Pinheiro dos Santos, da Rocinha, ganhou como “Carpinteiro”. Conhecido como Castello, Edson, 20 anos, é a terceira geração de uma família de carpinteiros do Carnaval que, de tempos em tempos, passa o formão. “A carpintaria é a base de tudo, mas, assim como a ferragem, é engolida pela pintura e pelo adereço”, teoriza Castello, que mora na favela do Jacarezinho, na zona norte. “Nas quadras e barracões existem nomes antológicos, grandes talentos que só a gente conhece”, lembra Pucchinelli, formado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Responsável pelo esqueleto da maioria dos carros alegóricos da Rocinha, o soldador Luciano Rocha, 24 anos, que mora em Pechincha, em Jacarepaguá, na zona oeste, é um desses operários do samba que no resto do ano penam para sobreviver. “Quando minha escola entra na avenida, arrepio até o último fio de cabelo”, suspira. Diferente de Daniel Rocha, 38 anos, que nunca desfilou, não freqüenta quadras e, confessa, não gosta de samba. “Minha relação com o Carnaval é só profissional”, destaca. Isso não o impediu de se tornar um dos mais respeitados projetistas de carros alegóricos do Rio, inovando ao trocar as aquarelas por projetos tridimensionais – um software adaptado para o Carnaval carioca. Todos os oito carros da Mocidade Independente foram feitos assim. “Cada um deles é um artista em sua especialidade”, elogia o carnavalesco da Mocidade, Mauro Quintaes, que do segundo andar do barracão 10 acompanha o corre-corre de 200 pessoas para levar à avenida o enredo A vida que pedi a Deus. “O segredo de um grande desfile está em fazer com que todos se sintam meio donos do espetáculo”, revela.

Autodidatas – “É um castelo de cartas onde, se alguém falhar, tudo desaba”, encena Max Lopes, 57 anos, grande pensador do Carnaval carioca. Há nove anos como carnavalesco da Mangueira, Max montou em seu bunker no Barracão 13 da Cidade do Samba uma equipe de “notáveis desconhecidos”, entre cenógrafos, projetistas e escultores, para concretizar o enredo Das águas do Velho Chico nasce um rio de esperança, sobre o rio São Francisco. Um deles, Fábio Costa, 31 anos, vai chegar ao Carnaval tendo desenhado perto de 100 figurinos. O impressionante é que nunca estudou desenho. “Diploma não diz muito no Carnaval. A maioria dos bambas é autodidata. Este não é o país da Escola de Belas Artes, é o da escola da vida”, acredita Max, que na dúvida tem alguns auxiliares com “canudo”.

Bamba profissional, Celso Justino de Oliveira Braz, 54 anos, passa os últimos dias antes do Carnaval numa garagem dentro da quadra da Mocidade Independente, em Padre Miguel, zona oeste do Rio. Responsável pelos instrumentos da “bateria nota 10”, Celso não apenas afina, mas fabrica a percussão com o couro que chega dos matadouros. São mais de 300 instrumentos para modelar, afinar e cuidar até o dia do desfile. Muito para quem aprendeu a tocar, recorda-se, ouvindo samba no rádio e tamborilando na mesa de casa. São outros tempos, conta o discípulo de mestre André, o diretor de bateria que virou uma lenda no Carnaval carioca. “Hoje o Carnaval é mais profissional, mais bonito até, mas fugiu muito do chão, da natureza do samba, da raiz”, historia Celso, observado por André Luís, Luís Eugênio e Jorge Henrique, aprendizes do ofício. “Mas sempre vai haver lugar pra gente”, decreta, para alívio geral. E segue esticando o couro até nascer mais um surdo.