A sexta-feira, 1º de março, transformou-se num marco da era Fernando Henrique Cardoso. O dia em que sua administração pode ter acabado por antecedência. Não pelo fato de a Polícia Federal ter invadido legalmente a empresa Lunus Serviços e Participações, de propriedade da governadora Roseana Sarney (PFL) e seu marido, Jorge Murad, secretário de Planejamento do Estado do Maranhão. O que pode comprometer irremediavelmente a imagem do governo são os métodos utilizados para obter informações que resultaram naquele mandado judicial de busca e apreensão. Uma história recheada de intrigas, grampos ilegais, mentiras, chantagens e contratação de arapongas ligados ao antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), tendo como motivação a guerra entre o PSDB e o PFL pela sucessão presidencial. E como pano de fundo a necessidade de se rediscutir o papel da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), comandada no Palácio do Planalto pelo general Alberto Cardoso, ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional da Presidência.

Alberto Cardoso e sua Abin dividiram com o ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, e com o secretário-geral do PSDB, deputado Márcio Fortes (RJ), os xingamentos do senador José Sarney (PMDB-AP), numa ríspida conversa pelo telefone com Fernando Henrique, às 19 horas daquela sexta-feira. O general, o ministro e o deputado foram classificados por Sarney como autores de “uma armação suja” para torpedear a candidatura presidencial de sua filha, Roseana. De início FHC tentou contemporizar. Reiterou que a ação da PF era consequência apenas de uma determinação judicial e que o governo não orquestrou nenhuma operação contra Roseana. Mas Sarney aumentou o tom e o presidente também passou a tratá-lo com rispidez. Acabaram encenando um dos mais graves telefonemas entre um presidente e um ex: “Não vou dizer mais nada para não desrespeitar a figura da Presidência”, finalizou Sarney. “É bom que não desrespeite mesmo!”, respondeu FHC batendo o telefone.

A reportagem de ISTOÉ apurou que o ex-presidente José Sarney está certo quando levanta suspeitas de que sua filha foi alvo de arapongagem ilegal. Em dezembro do ano passado, uma firma de segurança foi contratada para fazer escutas nos telefones da governadora e de sua família e um levantamento detalhado da atuação de suas empresas. O trabalho desses arapongas, incluindo fotos em situações íntimas, foi oferecido, a custo zero, no final de fevereiro ao governador do Rio, Anthony Garotinho (PSB), para ser usado como arma na campanha eleitoral. O governador recusou o material, mas procurou Sarney e informou que o interlocutor se apresentou como emissário do deputado Márcio Fortes, um dos coordenadores da campanha presidencial do senador tucano José Serra (SP). O calhamaço vinha dividido em três partes. A primeira, com as doações para a campanha de Roseana, a segunda, com denúncias contra a administração do governo do Maranhão, as empresas da governadora e seu marido, assim como suas ramificações na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “Era coisa de profissional”, disse Garotinho a Sarney. A terceira parte, indiscreta, trazia as tais fotos íntimas que, segundo o governador, “pareciam uma montagem nojenta”. O secretário-geral do PSDB, Márcio Fortes, tem negado qualquer participação no dossiê. Mas, no final do ano passado, um grupo de arapongas circulou por Brasília afirmando que havia sido contratado pelo PSDB para produzir o tal levantamento a respeito da família Sarney. No início do mês passado, Sarney procurou pessoalmente o presidente Fernando Henrique Cardoso. Indignado, denunciou que dois agentes da Abin estiveram no Maranhão, nos cartórios de títulos, em busca de dados sobre as empresas da família. FHC chamou o general Alberto Cardoso, que negou qualquer participação da Abin. O general deu a Sarney uma resposta recorrente. “Talvez sejam agentes do antigo SNI. Nós já nos desfizemos de muitos deles aqui na Abin, mas eles sempre andam por aí. Eu vou investigar.” Ficou na promessa.

O problema com ex-agentes do SNI, arapongas da Abin e funcionários da área de informação da PF e demais órgãos, nos corredores do poder em Brasília, é que ninguém sabe para quem exatamente eles estão trabalhando em determinado instante. Há espiões da ativa na Abin que vieram do SNI e agentes da área de informações na PF que, na verdade, estão executando serviços específicos a pedido da Abin e vice-versa. Pior. Muitos desses funcionários são ligados a firmas de segurança e circulam pela burocracia produzindo levantamentos para interesses privados. Uma mistura explosiva que fez o tal dossiê circular em gabinetes de políticos e órgãos públicos. Acabou tornando-se fonte tanto para intrigas e fofocas de bastidores como para bisbilhotices oficiais da Polícia Federal – cujo diretor-geral, Agílio Monteiro Filho, é filiado ao PSDB. Serviu também para investigações extra-oficiais do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), dirigido por Adriene Senna, mulher do presidente do TSE, Nélson Jobim, e grande amiga do candidato tucano, José Serra. As apurações iniciais da PF acabaram produzindo elementos suficientes de suspeita sobre as atividades de Jorge Murad para embasar o tal pedido de busca e apreensão em sua empresa.

Pontes queimadas – Ciente de que sua candidatura foi atingida em cheio pelos arapongas, Roseana repetiu à exaustão o enredo da “armação” nas reuniões que teve com os pefelistas durante toda a semana. O grampo de uma governadora do partido e dossiês produzidos por arapongagem ilegal levaram o PFL a uma atitude inédita: deixar o governo. Na segunda-feira 4, os três ministros pefelistas, que ficaram após a saída de Sarney Filho (PFL-MA) do Ministério do Meio Ambiente, levaram ao presidente um recado da cúpula pefelista. Como o general Cardoso é considerado intocável, o partido concentrou sua fúria no ministro da Justiça. “O Aloysio só colocou gasolina no incêndio. Atravessamos o rio e queimamos a ponte. É sem volta”, protestou o líder do PFL na Câmara, Inocêncio Oliveira (PE). Como a degola de Aloysio Nunes não foi aceita, o PFL foi obrigado a esticar a corda. Não votou e agora ameaça ir contra a prorrogação da CPMF. Mas o ápice do terremoto foi na quinta-feira 7, quando o partido formalizou o desembarque do governo. Um desembarque que ainda não está de todo esclarecido. Os ministros saíram, mas ficaram o presidente da Caixa Econômica, Emílio Carazzai, e o secretário da Receita, Everardo Maciel – ambos indicados pelo vice Marco Maciel. Além deles, há outros pefelistas que não têm nenhuma embocadura para oposição. “No Piauí, seremos governo até com o Lula”, antecipou o deputado Paes Landim, evidenciando que o PFL ficará rachado.

Nas sondagens que levaram ao rompimento com FHC, Roseana foi agressiva. Garantiu repetidas vezes sua inocência e disse que foi vítima de uma maquinação para desgastá-la. “Fui agredida. Só serei candidata se o partido romper com o governo que fez isso comigo. Se não sairmos, volto para o Maranhão e disputo o Senado. Se querem guerra, vamos para a guerra”, intimou Roseana cobrando um compromisso em torno dela e sinalizando uma futura guerra de dossiês. As circunstâncias do rompimento impossibilitam qualquer recomposição futura entre PFL e PSDB. “O Serra não ganha com isso, os candidatos da oposição, sim. Se o Serra for para o segundo turno ele está frito, não tem nosso apoio e vice-versa”, resumiu o líder do PFL no Senado, José Agripino Maia (RN). Mesmo com as explicações de Roseana, a cúpula pefelista ficou com a pulga atrás da orelha. Está convencida de que houve uma trama, mas teme que surjam provas contra o primeiro-casal do Maranhão. Ao receber o ultimato de Roseana para sair do governo, a cúpula impôs condições. Março é o mês decisivo para a candidatura. Se houver uma queda acentuada nas pesquisas ou se surgirem provas de irregularidades de suas empresas, Roseana Sarney terá de devolver a candidatura ao PFL, que tentará lançar o nome do prefeito do Rio, César Maia. Por outro lado, a descoberta da arapongagem tucana pode enterrar de vez a candidatura de José Serra. Hoje, esse é o quadro em que mais apostam os analistas políticos: Serra e Roseana estão prestes a executar um duplo haraquiri. Muito semelhante àquele protagonizado, no ano passado, pelos ex-presidentes do Senado Jader Barbalho e Antônio Carlos Magalhães.