Imagine uma força inimiga que avança sobre um território sem que o sistema de defesa se dê conta do ataque. Ela toma espaços sem dar sinais da ocupação e, aos poucos, conquista e destrói um importante ponto estratégico: o fígado. Isso mesmo. A ação descrita não se refere a um exército humano, mas a certos tipos de vírus que elegem como alvo esse órgão, causando uma forma de hepatite muito comum. Boa parte da população já ouviu falar da doença e é capaz de apontar a pele amarelada como sua principal característica. O que poucos sabem é que, em muitos casos, o agente invadiu o organismo há anos. Às vezes, há duas décadas. Ignoram também que há diferentes inimigos que causam o problema, embora atuem de modo diverso.

A hepatite – nome dado à inflamação no fígado – pode ser originada pelo consumo exagerado de álcool, remédios (quimioterápicos, por exemplo) e por outras doenças. Os tipos mais comuns, no entanto, são os causados por vírus. Eles destroem as células do fígado. Alguns dos sintomas do mal são náusea, febre, dores musculares e icterícia (olhos e pele amarelados). Mas, na maioria dos casos, a vítima não sente nada. Foi o que aconteceu com o médico José Ribeiro (nome fictício), 41 anos. Ele participou de um estudo para verificar a incidência de hepatite entre profissionais de saúde, já que eles são mais suscetíveis de contaminação devido ao manuseio de injeções, por exemplo. “Por acaso, fiz o teste e descobri que sofro da doença. Convivo bem com ela, pois não tenho sintomas”, diz. Ribeiro tem a hepatite B, um dos tipos mais comuns, ao lado da C. Calcula-se que existam cerca de 650 milhões de pessoas infectadas pelos vírus responsáveis por esses dois tipos da doença. Há outros três principais agentes causadores da hepatite infecciosa: os vírus do tipo A, D e E.

O mais “novo” dos vírus é também o mais perigoso. Em 1989, os cientistas identificaram o HCV, o causador da hepatite C. Ele é o responsável pela forma mais assustadora, aquela que quase não dá sinais (menos de 20% dos casos apresentam sintomas) e sobrevive por décadas no organismo, tornando o mal crônico. “O problema é grave também porque afeta muita gente”, explica o infectologista Antônio Barone, do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP). É verdade. Calcula-se que existam cerca de 400 milhões de infectados pelo vírus no mundo. Aqui, a hepatite C atinge quatro milhões de brasileiros.

Esse quadro alarmou o governo. Uma contra-ofensiva foi lançada em fevereiro, com o anúncio do Programa Nacional de Controle de Hepatites Virais para prevenir e dar assistência aos portadores da doença do tipo A, B e C. Uma das ações que em breve serão deflagradas é o treinamento de 20 mil médicos e enfermeiros da rede pública para capacitá-los a identificar as pessoas que correm risco de sofrer a doença e encaminhá-las para exames. Como uma das principais formas de contágio é por meio do sangue (caso das hepatites B e C), estão na mira usuários de drogas injetáveis e pessoas com tatuagem e piercing feitos em locais pouco confiáveis, por exemplo. Também merece atenção quem recebeu transfusão de sangue antes de 1993, época em que não existia teste para a hepatite C. Para os outros tipos, já havia exames que identificavam os vírus.

Outra medida será a adoção, a partir de agosto, de um novo teste que detecta mais rapidamente o HCV. Conhecido por NAT (teste de ácido nucléico), o método aponta a presença do vírus no sangue após 20 dias da contaminação. O exame usado até agora só indica a doença a partir de 70 dias após o contágio. O novo teste identifica o vírus. O convencional detecta os anticorpos, formados depois de o sistema de defesa reagir ao HCV. O NAT estará disponível nos 18 hemocentros públicos, responsáveis pela análise de todo o sangue doado na rede conveniada ao SUS. No entanto, os médicos frisam que não adianta correr ao banco se a pessoa tiver a clara intenção de apenas descobrir a presença do vírus. “Ela não será aceita”, diz a médica Ester Sabino, da Fundação Pró-Sangue, de São Paulo. Na rede privada, o Hospital Albert Einstein, de São Paulo, já usa o método no seu banco de sangue. “Essa medida melhorará a qualidade do sangue”, acredita José Kutner, do Einstein.

Quanto antes for descoberto o HCV, melhor. Se a pessoa é portadora do vírus há muito tempo, o fígado pode ficar tão comprometido que apenas o transplante é a saída. Segundo o infectologista Barone, 85% dos casos dessa hepatite evoluem para a forma crônica, o que pode acarretar cirrose ou câncer hepático. Os demais se curam espontaneamente. No estágio crônico, apesar de o fígado estar debilitado, é comum que o paciente não perceba a doença pelo fato de o vírus continuar atacando silenciosamente. Isso porque ele não é tão agressivo, tem ação lenta e é mutante. Como o vírus se camufla, o sistema de defesa acaba ludibriado por muito tempo. Dessa forma, o HCV consegue se multiplicar. Justamente por ser o vírus tão perigoso e sorrateiro, existe um esforço para identificar os portadores do HCV. No Hospital São Luís, em São Paulo, por exemplo, há um programa que incentiva as gestantes a passar por exames de detecção do vírus no pré-natal. “Se o diagnóstico for positivo, orientamos a paciente a fazer acompanhamento médico”, afirma Orlando da Conceição, do São Luís. Foi por meio desse programa que a psicóloga Cristina Santos (nome fictício) descobriu que é portadora do vírus tipo C. Fez exames para checar o estágio do problema e soube que tem carga viral baixa. “Uma vez por ano me submeterei a outros testes para verificar se a doença evolui”, diz.

De mãe para filho – No caso da hepatite B, as chances de a doença se tornar crônica são menores. De acordo com a infectologista Ivete Boulos, do HC/SP, cerca de 95% dos doentes formam anticorpos contra a doença e ficam livres da infecção. Os demais correm o risco de sofrer com os danos hepáticos e de contrair outro vírus, o D. Esse agente só contamina portadores crônicos do tipo B. Outro alerta importante dos médicos em relação ao HBV é a facilidade que esse agente tem para ser transmitido pela mãe à criança na hora do parto. Objetos cortantes também representam perigo porque podem conter vestígios de sangue, via comum de transmissão desse vírus. A doméstica Maria Siqueira, 48 anos, de São Paulo, portadora do HBV, tomou cuidados para proteger seus cinco filhos, todos saudáveis. “Não deixo usarem meu alicate de unha”, conta. A vacinação em recém-nascidos é mais um meio de conter o alastramento desse mal.

Embora responda pela grande parte das hepatites virais, a infecção pelo tipo A muitas vezes passa como se fosse uma gripe. O vírus penetra no corpo devido ao consumo de alimentos e bebidas contaminados. Em crianças, é mais branda. Quando ataca adultos, os sintomas (caso da diarréia) são mais fortes. “Em 2% dos doentes com mais de 40 anos, ela atinge a forma grave”, diz o hepatologista Antônio Eduardo Silva, da Universidade Federal de São Paulo.

Estudos – A ciência estuda outros agentes que podem provocar a hepatite viral. Christian Niel, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio, é um dos que trabalham nessas investigações. “É muito provável que existam outros vírus causadores da doença porque há pacientes com hepatite de causa desconhecida”, diz. Há muito a pesquisar. A existência do vírus F não foi confirmada. O G chegou a ser apontado, mas descobriu-se depois que ele não leva à hepatite. O TTV e o SEN-V, identificados no fim da década de 90, estão na mira. Mas não há conclusões.

Os especialistas também concentram esforços na busca de soluções. Cientistas brasileiros analisarão a eficácia de mais uma droga contra a hepatite B, o entecavir. Atualmente, para vencer a doença existem duas opções: o interferon alfa e a lamivudina. O primeiro estimula a produção de anticorpos. O segundo combate a multiplicação do vírus. O entecavir tem o mesmo propósito. Há outro remédio com esse fim em estudos, o adefovir. É bom lembrar que contra esse inimigo existe uma vacina muito eficaz. O que não acontece no caso da hepatite C. “Pelo fato de o HCV ser mutável e ter várias subespécies, é complicado desenvolver uma vacina preventiva”, explica o médico carioca Henrique Moraes Coelho, especialista na doença. Contra a hepatite C, o melhor caminho é o terapêutico. Três remédios estão hoje à disposição. O interferon alfa, o interferon peguilado e a ribavirina. O peguilado pode curar cerca de 55% dos casos se for associado à ribavirina (potencializador dos efeitos do interferon). Além disso, é injetado uma vez por semana. O alfa requer três picadas semanais e apresenta índice de cura de 42% na associação com a ribavirina. O peguilado começou a ser distribuído em agosto.

Há outra barreira importante a ser superada, a do preconceito. A maioria das pessoas acha que a principal forma de transmissão de todas as hepatites é a sexual, o que fortalece o estigma de que o doente leva uma vida promíscua. Na verdade, o contágio sexual é frequente apenas na do tipo B. Também há quem considere ameaçador o simples contato com um doente. Para alterar esse cenário, as armas são informação e mudança de postura diante do problema. O designer gráfico Denis Skepis, 41 anos, é portador do HCV e não tem medo de se expor. “É preciso acabar com o estigma que existe sobre a doença”, conclui.