Se há uma categoria de organismos que deu certo no planeta, é a dos vírus e bactérias. Menores que um ponto de tinta sobre o papel, mas nem por isso de forma indefinida – podem ser ovais, espirados, alongados –, eles são tão antigos quanto a Terra. Quando brotaram as primeiras rochas, há 4,6 milhões de anos, eles já estavam lá. Seu único desafio desde então é permanecerem vivos por toda a parte. No ar, na água, no homem, nos bichos. Muitos deles são amigos, protegem a flora intestinal humana, ajudam a captar nutrientes e vitaminas para as células. Outros matam sem piedade. A enorme capacidade de adaptação desses seres lhes garantiu uma proliferação fulminante. Algumas bactérias se dividem a cada 20 minutos e um dia depois da contaminação ela produz uma colônia de 100 milhões de membros. Qual o tamanho desse exército invisível? É como contar o incontável. O total de espécies foi estimado em 1,9 milhão, incluindo-se aí os fungos, as algas e os protozoários. Só que vírus e bactérias são mais assassinos, e sua especialidade é vencer obstáculos. Tenazes, aderentes e sofisticados, eles se grudam à parede das células que, ao engolfá-los, morrem literalmente pela boca.

No século passado, o maravilhoso mundo dos antibióticos reduziu as mortes causadas por pestes intratáveis e aumentou a expectativa de vida de ricos e pobres. Mas a luta entre o homem e a natureza é interminável. Agora, um grupo de 20 bactérias tornou-se resistente
a um largo grupo de antibióticos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) implantou um programa de monitoramento das bactérias prevendo o pior: a redução das opções de terapia, o aumento das infecções e das taxas de mortalidade. Os vírus, para os quais há menos drogas à disposição, acenderam um sinal de alerta no mundo científico devido à rapidez com que sofrem mutações e à sua capacidade de recombinação. Uma pesquisa realizada pela universidade americana da Califórnia com doismil portadores do HIV, o transmissor da Aids, demonstrou que, de cada cinco pacientes, um está infectado por vírus resistentes aos coquetéis de medicamentos que começaram a pipocar em 1996. “A situação é mais preocupante quando se considera que a mobilidade do turista faz as doenças atravessarem continentes de um dia para o outro”, afirma a bacteriologista Dália dos Prazeres Rodrigues, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio.

Dália coordena um programa nacional de monitoramento de resistência das enterobactérias como a salmonela. A porta de entrada para o organismo são os alimentos processados ou manuseados sem higiene, como a carne mal cozida, a verdura mal lavada ou a maionese exposta ao calor numa festa. Em seis anos, o índice de resistência dessas bactérias a mais de cinco antibióticos subiu de menos de 5% para 18%. O fortalecimento das enterobactérias se deve ao uso dessas drogas como estimuladores do crescimento e da prevenção de doenças em animais. Hoje não há galinha ou porco que chegue no mercado gordinho e corado sem tomar medicamentos. Nos EUA e na Europa, metade dos antibióticos vendidos vai parar no estômago dos animais, que contraem bactérias resistentes e as repassam aos homens.

No Brasil, as 58 milhões de unidades de antibióticos vendidas no ano passado ajudaram bactérias causadoras da meningite e da tuberculose a avançar na guerra pela vida. A penicilina– o protótipo milagroso dos antibióticos produzido a partir dos fungos – não surte mais efeito em 15% dos tipos de pneumococcos que provocam a meningite. “As bactérias resistentes passam essa característica para outras, aumentando o risco de infecções na comunidade”, explica Maria Cristina Brandileone, pesquisadora do Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo.

Entre as ameaças, a tuberculose é a mais preocupante. A produção de um arsenal de drogas nos últimos 50 anos trouxe a promessa de erradicação da doença. Mas o milênio se inicia com a perspectiva de o mal voltar a ser incurável, como no século XIX, e os médicos só poderem receitar o ar puro das montanhas aos tuberculosos. Somada à desnutrição e à falta de saneamento básico que favorecem a doença, agora surge a resistência em 14,4% dos casos de pacientes crônicos no Brasil e em 36% no mundo. Há ainda 10% de casos em que as vítimas foram infectadas por bactérias resistentes sem nunca terem tomado remédio contra. “A interrupção do tratamento favorece o inimigo porque nem todo paciente consegue tomar três comprimidos por dia durante os seis meses recomendados”, observa a microbiologista Maria Alice Telles, do Adolfo Lutz.

A automedicação é um prato cheio para os microorganismos. “O balconista sugere o que pensa ser bom para o cliente e ele acha que se dará melhor com um remédio de última geração, quase sempre mais caro. Se todo mundo usar a novidade, ela não vai mais servir”, aconselha Isaías Raw, presidente da Fundação Butantan, em São Paulo, que produz vacinas contra hepatite, gripe, tuberculose e meningite para a rede pública. A função dos antibióticos é romper a parede da bactéria para matá-la ou atuar em seu metabolismo, interrompendo sua reprodução. Quando não são ingeridos da maneira correta, eles eliminam as bactérias sensíveis e fortalecem as mais resistentes. Obrigados a se modificarem para devorar os inimigos e se manterem vivos, os vírus e as bactérias desenvolveram um arsenal de ferramentas para enganar as células. Enquanto as bactérias são organismos unicelulares com vida própria, os vírus não passam de um envelope de proteína que depende da máquina humana para se multiplicar. Por isso é tão difícil encontrar remédios que os fulmine sem eliminar o que há em volta. “Os vírus enviam comandos químicos às células para que elas produzam um exército de replicantes”, ensina Maulori Cabral, professor de virologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As mutações ocorrem por dois motivo. Um deles
é um erro da célula humana ao fazer as cópias. O outro são as recombinações, que acontecem quando dois vírus diferentes se encontram dentro de um organismo, em geral um animal, e dão origem a um terceiro tipo.