Na língua inglesa as qualificações de gêneros são muito específicas e, de certa forma, bem rígidas. Os pronomes He e She (ele e ela) qualificam apenas seres humanos, masculino no primeiro caso e feminino no segundo. A tudo mais está reservado o pronome It, desprovido de gênero. Assim, um cachorro e uma gata, por exemplo, serão sempre referidos como It. Mesmo que algumas pessoas, por afeição, insistam em qualificar Totó de He, ou a angorá Bichana de She, em termos gramaticais estão cometendo, digamos, uma licença poética. Juridicamente, os códigos civil e penal dos Estados Unidos também usam a mesma rigidez quando tratam dos gêneros sexuais. Com a desvantagem que, legalmente, há pouquíssimo espaço para licenças poéticas. E essa falta de maleabilidade das leis nos Estados que compõem o país que mais tem advogados no mundo acaba deixando no limbo gente como J’Noel Ball, professora e dona-de-casa de Kansas City (Missouri), e Michael Kantaras, um representante de vendas na Flórida. Tudo porque a medicina, com os tratamentos químicos e as técnicas de cirurgia plástica, possibilita, digamos, muito mais jogo de cintura na questão de quem é He ou She. Assim, J’Noel, até 1994, era Jay Noel: um homem. E Kantaras, em 1987, abandonou sua identidade como Margot, trocou seu par de seios por um pênis, deixou crescer a barba, casou com a dona-de-casa Linda e virou pai de família. Mas as aparências, nestas metamorfoses, pouco importam: na Flórida ou no Missouri, estes e outros transexuais acabam classificados como It.

Os dois casos ganharam as atenções do país não tanto por seu estilo de vida, mas por questões jurídicas que se mostram cabeludíssimas. Kantaras, por exemplo, está lutando na Justiça para ter a guarda do casal de filhos que adotou – um menino de 12 anos e uma menina de dez, que mesmo tendo descoberto somente agora que ele já foi mulher, ainda o chamam de pai. Sua ex-esposa, Linda, quer a custódia exclusiva das crianças e evoca para isso a lei que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na maioria dos Estados americanos – com exceção de Vermont –, homem não pode casar com homem, nem mulher com mulher. He e He – She e She is a No-No. Deste modo, a suposta união dos Kantaras não poderia ser válida e Michael – que Linda sempre soube ser um transexual – não tem pátrio poder.

Em Kansas City, J’Noel também se depara com dúvidas quanto ao seu casamento com o finado Marshall Gardiner. Os dois viveram “uma união amorosa sublime”, segundo confidenciou J’Noel a ISTOÉ na semana passada. O certificado de casamento, de 1998, mostra que os dois oficializaram esta união. Só que o juiz de paz não sabia na época que a noiva, até quatro anos antes, era o professor de finanças do Park College, reconhecido como Jay Noel, um homem grandalhão. Este pormenor poderia ter passado totalmente despercebido não fosse a morte de Marshall, 11 meses depois das bodas. Acontece que em seus 85 anos de vida, boa parte deles passados como um legislador famoso na cidade, Marshall acumulara uma fortuna estimada em US$ 2,5 milhões. Mesmo dono desta bolada, o velhinho não fez testamento. Assim, depois de sua morte, seus bens teriam de ser divididos igualmente entre a esposa e os filhos.

Joseph Gardiner é o filho único do primeiro casamento de Marshall e, embora não falasse com o pai há anos nem conhecesse sua nova madrasta, teria direito a 50% do espólio. A partilha, porém, não lhe agradou. Ele contratou um detetive particular para saber quem era esta J’Noel que abocanharia US$ 1,25 milhão. Ao saber que se tratava do ex-Jay Noel Ball, Gardiner entrou na Justiça reclamando exclusividade na herança, já que o status matrimonial da viúva era ilegal. Em janeiro de 2000, um juiz de Kansas City deu ganho de causa a Joseph alegando que J’Noel Gardiner “nasceu homem e permanece homem para propósitos de casamento sob as leis de Kansas City”. Quatro meses depois, uma comissão de três juízes da Corte de Apelações do Estado reverteu esta sentença, validando o casamento. “Nós não podemos mais concluir quem é homem e quem é mulher baseados na quantidade de pêlos faciais ou no tamanho dos pés exibidos por uma pessoa”, diz a sentença. A Suprema Corte deverá bater o martelo sobre esta questão nos próximos meses.

Espera-se que a decisão da Suprema Corte crie jurisprudência nestas questões de transexuais, que cada vez mais invadem o chamado “american way of life”. A revista Time, ao reportar o caso dos Gardiner, cita a professora Mary Coombs, da Faculdade de Direito da Universidade de Miami, que nota mudanças nos arquétipos de família no país. Coombs lembra que o grupo composto de mamãe-papai-dois filhos-e-um-cachorro já não representa unanimidade no modo de vida dos Estados Unidos. Segundo a Time, as estatísticas dão conta de que algo em torno de 30 mil pessoas se submeteram a operações para mudança de sexo. Grande parte deste exército de He-She e She-He está muito bem casada, mas ainda em situação complicada. Fora estes, ainda existem os milhares de casais de homem-com-homem e mulher-com-mulher, muitos criando filhos. “Quando casei com Linda ela sabia que eu havia mudado de sexo. Assim como minha nova namorada, Sherry, sabe exatamente quem sou eu”, disse Kantaras a ISTOÉ na semana passada. “Linda estava grávida de um ex-namorado quando nos casamos. Eu assisti ao parto e estive presente na vida de meu filho desde seu primeiro suspiro neste mundo. Ele nunca conheceu outro pai. Adotei o menino e, dois anos depois, Linda foi submetida a inseminação artificial – tendo meu irmão como doador de sêmen – e nasceu uma menina que eu prontamente adotei. Desde então, trabalho em três empregos para sustentar minha família. Não é justo que tenha meus filhos arrancados de mim”, disse Kantaras, que já foi Margot. O juiz Gerard O’Brian, que decidirá sobre a validade ou não do casamento de Michael, espera uma decisão da Suprema Corte no caso de Kansas City para dar uma sentença. Mas já avisou que não gosta da idéia de o Estado determinar quem é homem e quem é mulher. Como, aliás, faz o Estado brasileiro, onde Roberta Close, que já foi chamada de “A melhor mulher do Brasil”, por exemplo, ainda é legalmente o cidadão Luiz Roberto Gambine.