20/09/2011 - 17:30
A gaúcha de Veranópolis chegou ao primeiro escalão do Palácio do Planalto pisando firme e com sotaque carregado. No comando da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Maria do Rosário, 44 anos, trouxe consigo mais de 20 anos de experiência na luta contra a exploração sexual infantil, além de sua atuação na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Vai precisar dessa bagagem. Depois de eleita deputada federal pelo Rio Grande do Sul pela terceira vez, assumiu a pasta com a difícil tarefa de tocar a criação da Comissão da Verdade. Encontrou dificuldades nos dois extremos: de um lado, militares tentando impor limitações jurídicas ao projeto e, de outro, os familiares das vítimas lutando para ampliar o alcance da Comissão. A poucos dias da possível votação do projeto, ficou no meio do caminho. “A resistência ao projeto como está não contribui para o avanço da matéria”, disse a ISTOE. Mesmo assim, avisa que as pessoas poderão se surpreender com o poder que a Comissão terá. De tudo o que pretende realizar a frente da SDH, Maria do Rosário elege sua principal meta: fazer a população entender que direitos humanos não é salvo-conduto para a ação dos bandidos.
ISTOÉ – O projeto da Comissão da Verdade que será votado é aquele que a senhora gostaria de ver aprovado?
Maria do Rosário – Desde 1995, temos uma comissão aqui na secretaria que fez um reconhecimento de todas as pessoas torturadas, mortas e desaparecidas pela ação da ditadura militar, mas ela não teve os instrumentos para ir mais afundo nas circunstâncias dessas mortes. Hoje eu vejo que estamos diante de uma possibilidade singular. A resistência ao projeto como está não contribui para o avanço da matéria, ainda que tenham reivindicações que possam ser consideradas justas. Eu não participei da redação, mas as pessoas podem se surpreender com o poder que terá essa comissão para buscar a verdade e a memória no Brasil. Já a responsabilização criminal, esbarra em outra situação…
ISTOÉ – Na Lei de Anistia?
Maria do Rosário – Sim. E hoje não diz respeito ao Poder Executivo analisá-la. Como governo, eu tenho que desencadear o processo.
ISTOÉ – Então não existe possibilidade de mexer na lei?
Isso diz respeito ao Supremo ou ao próprio parlamento. O instrumento real e possível, que dá um passo muito significativo, é a aprovação da Comissão da Verdade. O futuro será estabelecido pelo Supremo, pelo parlamento e pela própria Comissão da Verdade.
ISTOÉ – Com a troca de ministros na Defesa, o processo ficou mais lento?
Maria do Rosário – Eu conversei com o Celso Amorim e ele me relatou que a construção da comissão com as diversas áreas das Forças Armadas está bem resolvida.O Congresso não tem perspectiva de segurar o projeto. O presidente da Câmara, Marco Maia, vai convocar um encontro logo. Então, eu não tenho uma expectativa de prazo, pois o assunto está sendo tratado não como uma questão do governo, mas uma demanda da democracia. Conversei com todos os lideres no Congresso e o ministro Nelson Jobim também tinha feito esse trabalho. Fizemos tudo de forma integrada, sem hierarquia.
ISTOÉ – Sua relação com Nelson Jobim era difícil?
Maria do Rosário – Era de respeito. Eu cheguei aqui para fazer um trabalho e ele tinha o dele. Não concordo com as declarações que ele deu [sobre as ministras Gleisi Hoffman e Ideli Salvatti, mas isso não apaga as contribuições que ele deu ao Brasil.
ISTOÉ – E a chegada de Celso Amorim?
Maria do Rosário – Acredito que se mantivermos a mesma base de relação que tínhamos, será respeitosa, porque eu não escolho ministro. Quem escolhe é a presidente Dilma. Eu trabalho com a equipe que ela escolheu. Todos trabalhamos para ela e para o Brasil, mas tenho apreço pelo Celso Amorim.
ISTOÉ – Recentemente a Secretaria elaborou um relatório sobre exploração sexual infantil baseado no Disque Direitos Humanos, o Disque 100. É um pedido da presidenta?
Maria do Rosário – Todas as denúncias que chegam orientam a formulação das políticas nacionais e o direcionamento das ações nos Estados. O mapeamento é parte de um diagnóstico que nós estamos fazendo para definir as políticas públicas do próximo período. A presidenta tem prioridade no tratamento da violência contra criança.
ISTOÉ – Cerca de 70% das denúncias estão concentradas nas sedes da Copa. O que a Secretaria fará quanto a isso?
Maria do Rosário – Faremos um trabalho nacional, mas entre as situações de vulnerabilidade que vamos tratar estão justamente também cidades onde haverá grandes eventos.Estamos fazendo uma agenda especifica, com trabalho integrado à Casa Civil. Eu só não posso te apresentar o programa já concluído, mas estamos trabalhando nele para o próximo período.
ISTOÉ – Qual é o próximo passo?
Maria do Rosário – Estamos trabalhando fortemente para garantir que os Conselhos Tutelares sejam eficientes e que os conselheiros tenham apoio de políticas públicas. Vamos articular essas ações em contato com municípios e estados. Nós estamos criando escolas voltadas para a formação de conselheiros em 15 estados, mas queremos chegar a todo o País.
ISTOÉ – Existe a previsão de projetar um banco de DNA de criminosos para crimes sexuais?
Maria do Rosário – Não avançamos nesse sentido e não temos isso no diagnóstico.
ISTOÉ – A senhora tem conhecimento dos casos de desaparecimento ou sequestros relacionados a crimes sexuais?
Maria do Rosário – É verdade que muitas vezes uma criança ou adolescente vai para as ruas porque dentro de casa ele vivencia situações de intolerância. Mas também é verdadeiro que em casos de desaparecimento precisamos trabalhar com uma possibilidade real de sequestro dessas crianças. Existe ainda a situação em que ela (a criança) sai de casa por qualquer motivo e na rua cai nas redes criminosas.
ISTOÉ – Esse tipo de desaparecimento está sendo tratado pelo Ministério, então?
Maria do Rosário – Sim, muito. A questão está conectada a exploração sexual e a morte de meninas e meninos no Brasil. É um assunto tão importante que há algumas semanas lançamos uma portaria que instaurou o Comitê Nacional de Crianças Desaparecidas. Essa rede é responsável por formular políticas eficientes, nossa base de dados tem que ser única. Temos dificuldades no preenchimento de informações por parte dos Estados e muitas diferenças na forma como cada Estado configura as situações de desaparecimento e exploração sexual. Queremos organizar uma reunião com todos os secretários de Segurança Pública de todo o Brasil para tratarmos esse problema e ao mesmo tempo instalar um protocolo único para que saúde, polícia, assistência social e conselho tutelar, enfim, para que todos possam analisar o que é uma situação de desaparecimento, o que é uma situação de exploração sexual e quando uma questão se transforma na outra.
ISTOÉ – A senhora tem conhecimento de que muitos casos não são sequer relatados como exploração sexual e aparecem apenas como desaparecidos?
Maria do Rosário – Eu tenho que concordar que a notificação é precária. Como ministra posso dizer que nosso cadastro nacional dos desaparecidos ainda não funcionou. E que o nosso desafio é requalificar imediatamente o instrumento, remeter aos Estados para preenchimento para conseguirmos investigar o desaparecimento das crianças como a lei diz e para além das fronteiras.Esse crime tem um viés de gênero inegável.
ISTOÉ – A senhora tem fama de durona nos bastidores. Isso corresponde à realidade?
Maria do Rosário – Ah, que bom (risos). Com os gestores temos que ser firmes mesmo. Foi-se o tempo em que políticas sociais não deviam ter monitoramento e resultados objetivos. Ao fim de cada programa devemos apresentar resultados. Acredito que devemos ter profunda sensibilidade em relação aos que sofrem as violações, mas também é preciso propor a eles que reajam em defesa de seus direitos, sem uma lógica de vitimização permanente, sem tutela. As pessoas precisam ser agentes de mudança de suas próprias vidas. Por isso, procuramos fazer com que as vítimas estejam integradas e nós temos que oferecer o apoio necessário para elas serem agentes dessa transformação.
ISTOÉ – Como é a sua relação com Dilma?
Maria do Rosário – A presidenta é exigente e eu considero isso uma virtude. Ela não aceita programas que não tenhamos absoluta condição de resolver. Ou seja, não podemos só falar. É a cobrança dela. No entanto, a presidenta tem destacado que a nossa pasta é uma pasta articuladora. Isso tem possibilitado ações de governo para que todos os ministérios tenham as portas abertas para nós. O fato de a ministra Gleisi ter assumido a Casa Civil está sendo muito importante. Há uma proximidade maior, não que não existisse antes, mas é que a ministra faz parte desse trabalho. Para ter ideia, a ministra Gleisi vai participar das reuniões de Conselho junto conosco no próximo período.
ISTOÉ – Ministra, a senhora já se posicionou a favor da aprovação da PEC 438 que confisca terras onde for constatado trabalho escravo. O que trava a aprovação?
Maria do Rosário – Sinceramente, o que trava hoje essa aprovação é a bancada ruralista. Mas podemos ter uma mudança de postura, inclusive para que esta bancada livre-se da pecha de ser a bancada do trabalho escravo. A presidenta destacou isso. Agora, está nas mãos do parlamento. Eu sou favorável e já conversei até com o setor ruralista. O agronegócio não deve confundir sua atuação com o trabalho escravo.
ISTOÉ – Qual será seu maior desafio a frente da SDH?
Maria do Rosário – Existe uma necessidade do País não perceber direitos humanos como “coisa de bandido”. Essa é a construção do senso comum. Queremos colocar os direitos humanos como um princípio civilizatório, um direito de todas as pessoas. É fundamental para o Brasil perceber os direitos humanos em todas as camadas para uma melhor inclusão e integração social. Só assim entenderemos a violência banalizada do nosso cotidiano.
ISTOÉ – Como fazer isso?
Mobilizando todos os segmentos com os quais nós trabalhamos, todos os fóruns e a própria sociedade mais diretamente através de seus conselhos.
Nós temos vários fóruns, hoje podemos citar 13 fóruns nacionais que são das mais diversas áreas.
ISTOÉ – É sua meta para o mandato?
Maria do Rosário – A meta é de que esses segmentos interajam com a sociedade como um todo, valorizem a participação social e construam os direitos humanos como direito de todos e todas. Se isso se der no plano conceitual, pretendo depois de quatro anos ter um sistema de proteção integrado no Brasil.