Médico gaúcho que dirige oInstituto Sabin, nos EUA, alertapara o risco do retorno de doençasque deveriam estar erradicadas

Um dos desafios do mundo é eliminar do planeta doenças como a poliomielite, o sarampo, a rubéola e a malária. Poucas pessoas conhecem tão profundamente essa luta como o brasileiro Ciro de Quadros, 65 anos, gaúcho de Rio Pardo. Atualmente, ele vive em Washington, onde dirige o Instituto de Vacinas Albert Sabin – que faz pesquisas e desenvolve programas de imunização que podem ser aplicados no globo. Quadros participa de inúmeros comitês que distribuem recursos e incentivam o uso de vacinas, especialmente em países pobres. O especialista, porém, está preocupado com os recentes casos de pólio que surgiram na África. Ele alerta para a necessidade de os governos garantirem recursos permanentes para a vacinação contra essa enfermidade. É crítico, por exemplo, dos países que eliminaram do calendário oficial o dia nacional de vacinação contra esse mal. “Não se pode fazer uma economia que trará a doença de volta. Felizmente, no Brasil, essa vacinação é feita rigorosamente”, diz.

A paixão de Quadros pela saúde pública começou na década de 60. Depois de se formar em medicina em Porto Alegre, ele partiu para a Amazônia. Sua meta era aumentar a vacinação de pólio, varíola e outros males que poderiam ser prevenidos. Nesse tempo, a imunização não chegava a 10% da população local. Para isso, fez de tudo. Mobilizou a comunidade, criou cooperativas, até construiu redes de esgoto e, quando alguma criança faltava à vacinação, mandava buscá-la em casa. Assim começou a desenhar um estilo de trabalho e também uma estratégia de combate de doenças infectocontagiosas utilizada na erradicação da varíola e da pólio no Brasil, nas Américas e na África. Em 1977 foi convocado a chefiar o programa da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) para erradicar a poliomielite nas Américas, abrindo mais um capítulo em sua história de sucessos contra alguns dos principais inimigos da humanidade. Desde então, Quadros briga feito um leão para angariar recursos, manter os níveis de vacinação nos países em desenvolvimento e ricos e fazer as novas vacinas chegarem onde são mais necessárias.

ISTOÉ – A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu que a meta para erradicar a poliomielite seria este ano. O que aconteceu?
Ciro de Quadros

Nas Américas, cumprimos a meta estabelecida para a região. Já com o programa mundial houve problemas do ponto de vista de recursos. E isso é uma espécie de convite ao desastre, que obrigou os técnicos da OMS a adaptar a estratégia à quantidade de recursos existentes. A erradicação da pólio exige um conjunto de medidas. Se você não aplicar todas não vai erradicar a doença. É isso o que está ocorrendo no mundo em relação à eliminação da enfermidade.

ISTOÉ – E como o sr. se sente diante dessa postergação?
Ciro de Quadros

Extremamente triste. Em 2002, a pedido da OMS, fiz viagens a diversos países, como Angola e Congo, para produzir um relatório confidencial sobre a erradicação da pólio. Mostrei que a situação fundamental era a falta de recursos, que não vieram. Fiz muitas recomendações e alertei que a doença poderia voltar. Nessa época, muitos países da África, como Etiópia e Angola, estavam livres da doença. Mas havia problemas na Nigéria. Um governador achava que a vacina esterilizaria as mulheres e se opôs à vacinação. Isso foi uma complicação porque muitos países em volta já tinham erradicado a pólio, mas não dispunham de recursos para continuar vacinando intensamente. Então baixaram a guarda e a doença voltou. Nos últimos dois anos, ela se espalhou para países que já estavam livres. Angola, que não tinha pólio havia quatro anos, agora teve casos que vieram da Índia. Os técnicos da OMS tinham interrompido os dias nacionais de vacinação em todos os países que já estavam sem poliomielite, inclusive ao redor da Nigéria, porque não havia verbas. Assim, a cobertura vacinal caiu a menos de 20% e a Nigéria exportou casos para outros países. E há casos surgindo na Indonésia.

ISTOÉ – Qual é o preço disso?
Ciro de Quadros

Há um perigo tremendo de que a pólio não seja erradicada e volte com força nos países mais pobres. Tenho insistido para que se coloquem os recursos necessários à erradicação da doença.

ISTOÉ – Há casos recentes na África?
Ciro de Quadros

Sim. E nestes últimos meses devem estar acontecendo outros. Mas diante da gravidade do fato, recursos foram obtidos e recomeçaram os dias nacionais de vacinação. Estamos correndo atrás da bola. Com as novas campanhas que estão fazendo na África, já se tem a esperança de que se pode interromper o surgimento de novos casos. A Nigéria, por exemplo, agora aceitou a vacinação. Há uma grande expectativa de que a pólio seja erradicada nos próximos dois anos.

ISTOÉ – E no Brasil? Há risco de a doença voltar antes de ser realmente erradicada no mundo?
Ciro de Quadros

Esse risco é relativamente baixo porque o Brasil continua fazendo dias nacionais de vacinação. As Américas, em geral, estão bem vacinadas.

ISTOÉ – Este mês houve o sétimo caso de morte de humano contaminado pela gripe aviária. Enquanto isso, as empresas farmacêuticas e governos procuram criar métodos para fabricar vacinas com mais rapidez. Houve algum erro de avaliação para sermos pegos de calça curta pela ameaça de uma pandemia?
Ciro de Quadros

Certamente. Tenho a impressão de que as autoridades mundiais de saúde nunca realmente deram atenção à necessidade de uma tecnologia mais rápida para a produção da vacina da gripe. Sempre se soube que eventualmente irão ocorrer epidemias e possivelmente pandemias. Mas acontece que a vacina de Influenza (o vírus causador da doença) nunca foi prioritária na maioria dos países. Ainda hoje não é uma vacina que se use rotineiramente em crianças e jovens adultos. Em alguns lugares é ministrada apenas a idosos. Isso foi uma falha de visão muito grande. Neste momento, a parte positiva é que a ciência está se mobilizando. Ou seja, recursos estão sendo alocados em vários países para investigações de novas tecnologias de produção (que agilizariam a fabricação) e também para uso de substâncias que irão aumentar a potência da vacina. Muitos centros de investigação americanos e europeus estão trabalhando nesse sentido. Acredito que se deva chegar a uma nova tecnologia em um ou dois anos.

ISTOÉ – E a rubéola? A Opas lançou uma meta de erradicação em 2010.
Ciro de Quadros

Provavelmente conseguiremos fazer isso antes de 2010 nas Américas porque o programa vai bem. A proposta relativa à rubéola, da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), serve como modelo para uma ação global. Na minha visão, em algum momento após erradicarmos a pólio, o mundo decidirá erradicar o sarampo e depois a rubéola. Acredito que esse processo acontecerá nas próximas duas décadas. Nós queremos que as vacinas passem a ser usadas em países que não as estão usando. Na África, por exemplo, praticamente nenhum país utiliza. Na Ásia, muito poucos. Então discutimos com as autoridades de saúde para que as usem. Principalmente porque elas protegem contra três doenças (sarampo, rubéola e caxumba). Não é uma vacina cara. Estamos mobilizando recursos da Fundação Bill & Melinda Gates, Cruz Vermelha americana e da OMS para diminuir a mortalidade por sarampo e rubéola na África.

ISTOÉ – Como age a rubéola?
Ciro de Quadros

A rubéola não mata como o sarampo. É uma doença benigna para quem sofre da enfermidade, mas é terrível para o bebê de grávidas que adoecem. Ele pode ter malformações congênitas, cegueira, surdez, problemas cardíacos.

ISTOÉ – Quais são hoje as maiores ameaças infectocontagiosas à saúde da humanidade?
Ciro de Quadros

Uma é a malária. Outras são o HIV e a tuberculose, que foi trazida de volta pela epidemia de Aids. Do ponto de vista dos serviços de saúde do mundo, o desafio está nessas enfermidades comuns: sarampo, rubéola, pólio. As doenças parasitárias também são desafiadoras. São males praticamente esquecidos. Órfãos. Como a esquistossomose e a ancilostomose.

ISTOÉ – O Instituto Sabin está desenvolvendo uma vacina contra a ancilostomose?
Ciro de Quadros

Lembra-se do personagem de Monteiro Lobato chamado Jeca Tatu, que vivia cansado, anêmico, fraco e cheio de vermes? Essa é a descrição de um mal endêmico em várias regiões do Brasil e do mundo, a ancilostomose. A origem desse mal é uma larva que penetra na pele, vai até o fígado, avança pelo sistema circulatório e chega ao intestino, onde desenvolve um verme que suga o sangue e causa anemia profunda. Há dois vermes – o Ancilostomo duodenale e o Necator americanus. A incidência é altíssima em algumas áreas. O Instituto Sabin está investindo US$ 40 milhões para desenvolver uma vacina, com apoio da Fundação Bill Gates. No Brasil, a Fundação Oswaldo Cruz fará os testes clínicos em Minas Gerais, em 2006, na cidade de Americaninhas, onde 80% da população está infestada com esse parasita. E fizemos acordo com o Instituto Butantan para produzir as doses de teste. Vamos transferir a tecnologia o mais rápido possível para os países que necessitam da vacina. Ela trará inúmeros benefícios. Aumentará incrivelmente a produtividade, por exemplo. Por outro lado, diminuirá a necessidade de tratamentos.

ISTOÉ – O sr. tem dificuldade de convencer os governos da necessidade de vacinas, como a do rotavírus?
Ciro de Quadros

O rotavírus é responsável por muitas perdas de vidas de crianças
no mundo. Um dos problemas maiores que vivemos é que os governos não
têm dados suficientes, provenientes de uma boa vigilância sanitária, para tomar
suas decisões estratégicas. É fato que até recentemente não existia vigilância do rotavírus nos países, nem de pneumococos (que causa desde resfriados até meningite), rubéola congênita, câncer cervical… É preciso organizar a vigilância epidemiológica para que se entenda a magnitude das doenças. Nesse aspecto, o Brasil melhorou muito nos últimos anos. Tanto que foi o primeiro país da América Latina a incluir a vacina de rotavírus no seu calendário nacional de vacinação. O Panamá é outro país que incluiu.

ISTOÉ – Qual é o propósito do Global Alliance for Vaccines e Imunization (Aliança Global para Vacinas e Imunização, em tradução livre), organismo do qual o sr. participa?
Ciro de Quadros

Um dos problemas fundamentais do mundo é que há um hiato entre o aparecimento de uma vacina e a sua utilização, principalmente em países em desenvolvimento. Em termos de imunização, por exemplo, a da hepatite B foi criada há quase 30 anos e só
agora começou seu uso começou a se expandir no mundo. A Global Alliance introduziu essa vacina em 70% dos países do planeta. Ela também ajuda cada nação a organizar seu programa de vacinas e ter um gerente nacional. Além disso, trabalha com os parlamentos latino-americanos para fazer leis protegendo os orçamentos para as vacinas. E há novas idéias surgindo para acelerar esse processo. Em 2006, entra em ação o International Financial Facility, um projeto do ministro das Finanças da Inglaterra para levantar dinheiro para que se consiga levar vacinas aos países mais pobres. É genial. O International Financial é um mecanismo que permite aos países industrializados buscar recursos no mercado, vendendo bônus, para levantar bilhões de dólares. Neste momento, vários países se comprometeram a prover US$ 4 bilhões.

ISTOÉ – O que o sr., que viveu na África e lida há tempos com questões de saúde pública, achou do filme O jardineiro fiel, de Fernando Meirelles (o longa, baseado no livro de John Le Carré, denuncia a realização de testes com remédios contra tuberculose na população africana, cujos graves efeitos colaterais e risco de morte são ocultados)?
Ciro de Quadros

Tinha lido o livro antes. Achei o filme bem feito e real. Coisas similares aconteceram não só na África, mas em outros lugares. Felizmente, nos últimos anos estão ocorrendo muito menos ou quase não acontecem mais porque há vigilância das populações e dos próprios investigadores. Hoje existem diversos comitês independentes de controle de qualidade e de controle de reações adversas. Se acontece algo, esses comitês botam a boca no mundo. Existe muito mais controle na área de vacinas. Filmes como esse ajudam a informar e educar a população.