Em algum momento daquele 25 de maio passado, os pensamentos do advogado peronista Néstor Carlos Kirchner, que então se preparava para assumir a Presidência da República Argentina, devem ter mergulhado nas profundezas do tempo, rememorando as veredas percorridas 30 anos atrás naquele mesmo dia, na mesma Casa Rosada, a sede do governo argentino. Kirchner tinha apenas 23 anos em 25 de maio de 1973, quando o também peronista Héctor José Cámpora tomou posse como presidente, marcando o fim de sete anos de uma desastrosa ditadura militar e trazendo demasiadas esperanças a um então eufórico povo argentino, que lotou a avenida e a Plaza de Mayo para aclamar o “Tio”, como Cámpora era carinhosamente chamado. E entre os mais entusiastas apoiadores de Cámpora destacavam-se os muchachos da Juventude Peronista (JP), a expressão política do movimento guerrilheiro Montoneros. Eram a “juventude maravilhosa”, na bajuladora e insincera definição do “Viejo”, o general e ex-presidente Juan Domingo Perón, o grande líder então asilado na Espanha. De origem católica conservadora, os montoneros foram forjados nas universidades argentinas nos embates contra o tacanho regime militar de 1966-1973, metamorfosearam-se em admiradores de Che Guevara e, possuídos por uma mística poderosa, abraçaram uma ilusão de tipo sebastianista, a de que Perón voltaria à Argentina como o messias dos Pampas, para construir uma “pátria socialista”. Afinal, a palavra de ordem da campanha do Tio era “Cámpora no governo, Perón no poder”. Cámpora, que não era de esquerda, sensibilizou-se com a rebeldia da juventude peronista, da qual fazia parte seu filho, e apadrinhou os muchachos.

Simpatizante da JP e dos montoneros, o presidente Kirchner recebeu de Eduardo Duhalde a faixa e o bastão presidenciais em uma cerimônia marcada por reminiscências daquela época, impossíveis de não ser registradas por um “sobrinho” que estava prestes a ocupar o mesmo lugar do Tio no sillón de Rivadavia (a cadeira presidencial). Afinal, a fugaz experiência da “primavera de Cámpora” deu lugar a uma sucessão de tragédias e de farsas que lançariam a Argentina na barbárie e, depois, na
impotência e na prostração, marcando profundamente a geração do atual presidente. Outra ditadura militar, o ensandecido regime de 1976 a 1983, eliminou entre dez mil e 30 mil argentinos, dizimou os muchachos e ceifou ou neutralizou grande parte das lideranças políticas do país. Mas duas décadas de democracia não foram suficientes para consertar o estrago: a persistência da crise econômica e a inépcia e a corrupção dos governantes fizeram dos políticos argentinos caricaturas de si mesmos.

uando Kirchner assumiu, muitos previam que ele – um tipo absolutamente sem carisma num país fascinado por mitos – seria pouco mais do que um fantoche do ex-presidente Eduardo Duhalde, que o apoiou na eleição contra o caudilho e ex-presidente Carlos Menem. Mas hoje, com apenas sete meses de mandato, Kirchner ostenta índices de aprovação que chegam a 86% de seus concidadãos. E isso apenas dois anos depois que multidões enfurecidas saíram às ruas pedindo “que se vayan todos!” (que saiam todos) os políticos, depois da renúncia do presidente Fernando de la Rúa. Kirchner surpreendeu ao remexer em feridas profundas, como as violações de direitos humanos pelos militares, mostrar-se altivo nas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e confrontar a Corte Suprema, dominada por menemistas corrompidos. Ao mesmo tempo, manteve com o Brasil e seu presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, uma relação privilegiada, sepultando de vez a década de equívocos das “relações carnais” da Argentina com os EUA, defendida pelo governo Menem.

Herança pesada – O novo presidente recebeu a pesada herança de Carlos Saúl Menem, que governou a Argentina por uma década (1989-1999). O menemismo foi um regime que, seguindo os cânones do “consenso de Washington”, implantou uma política de abertura econômica desenfreada, calcada na paridade cambial e na submissão carnal à pátria financiera. Essa política criou uma perigosa ilusão, já que a economia cresceu, na década de 90, a uma média de 4,9% do PIB, mas seu esgotamento levou o país à bancarrota. Assim, a Argentina, que já foi o país mais próspero e desenvolvido do continente, foi quase reduzida à condição de nação pária do sistema financeiro internacional. A crise explodiu para valer no governo Fernando de la Rúa (1999-2001), que, por inépcia, manteve a política econômica de Menem, levando a crise econômica e social à estratosfera. Com cacerolazos (panelaços) e grandes manifestações, a população obrigou De la Rúa a ir para a rua. Depois disso, o país mergulhou numa tal balbúrdia institucional que chegou a ter cinco presidentes em dois meses. O governo foi obrigado a dar o calote na dívida externa. O PIB caiu 20%. Hoje, depois de passada a pior fase da tempestade, a normalidade política foi restabelecida e a economia está em franca recuperação. Mas o abismo social está longe de ser estancado. Cerca de 20% dos 36 milhões de argentinos vivem com menos de US$ 1 por dia e o desemprego atinge 22%.
 

No discurso de posse, Kirchner prometeu que não vai pagar a dívida “à custa da fome dos argentinos” e disse que os credores “devem entender que só poderão cobrar seus débitos se a Argentina estiver bem”. Criticou o “Estado desertor” criado pelo menemismo e prometeu reconstruir o “capitalismo nacional”, velho sonho acalentado no primeiro governo de Perón. Mas Kirchner tocou fundo quando falou do resgate do combalido amor-próprio argentino. “Venho lhes propor um sonho, o de nos reconstruirmos como povo, lembrar as esperanças de nossos patriotas fundadores e de nossos avós imigrantes.”

É um desafio e tanto. Mas Kirchner é, ele próprio, um exemplo de perseverança e de uma “tenacidade de um colono patagão” para alcançar seus objetivos, como definiu o jornalista Miguel Bonasso, articulista do Página 12. Kirchner nasceu em 25 de fevereiro de 1950 em Río Gallegos, na distante província de Santa Cruz, na Patagônia, descendente de alemães e suíços, por parte de pai, e croatas, católicos, por parte de mãe. Era estudante de direito em La Plata, em 1974, quando, com sua noiva, a atual senadora Cristina Fernández, foi preso por alguns dias por “subversão”. No ano seguinte, Néstor e Cristina se casaram. O casal teve dois filhos: Maximo e Florencia. Em 1976, ano em que os militares derrubaram o funesto governo de Isabelita Perón, Néstor Kirchner se formou em direito. Como era “fichado” pela repressão, o casal partiu de La Plata para o exílio interno em Santa Cruz. Kirchner seria preso mais uma vez, mas acabou libertado dias depois. Impossibilitado de fazer política, o jovem advogado tratou de ganhar a vida. Com a mulher e um sócio, montou um escritório de advocacia. Mesmo com os perigos de se exercer tal profissão naqueles tempos, a empresa teve êxito e os Kirchner ganharam dinheiro suficiente para construir um patrimônio.

Com o fim da ditadura e o restabelecimento da democracia, em 1983, Néstor Kirchner entrou na política partidária. Em 1987, foi eleito
prefeito de Río Gallegos pelo Partido Justicialista (peronista), enquanto Cristina era eleita deputada provincial. Em 1991, depois do afastamento do governador menemista Arturo Puricelli, Kirchner foi eleito governador de Santa Cruz pela primeira vez. Com apenas 200 mil habitantes,
Santa Cruz estava falida. Kirchner enfrentou o problema com métodos pouco convencionais. Para sanar o déficit, entre outras coisas ele
cortou os salários dos funcionários públicos, mas restabeleceu seus valores, com juros, depois que as finanças da província foram reestruturadas. “A partir de então, ele desenvolveria um tipo de gestão heterodoxa, que combinou fortes investimentos públicos em infra-estrutura, habitação, educação e saúde, com rigor orçamentário. Sua administração – beneficiada por altos rendimentos petrolíferos, mineiros e turísticos – conseguiu manter uma forte presença do setor público e indicadores sociais opostos aos nacionais”, escreveu o jornalista Miguel Bonasso. Ele seria reeleito em 1995 e 1999.

Anticandidato – Mesmo com tais êxitos, Kirchner governava uma província inexpressiva, econômica e politicamente, o que tornava muito distante o sonho de chegar à Casa Rosada. Somente o desgaste da elite política da Argentina permitiu a Kirchner, com o apoio do presidente Duhalde, se tornar um candidato viável. No início, poucos se arriscavam a apostar nele. Desajeitado e estrábico, apelidado de “Pingolim” (pinguim), o então candidato se incomodava sensivelmente ao ter que enfrentar multidões e apertar as mãos de populares. Sem nenhuma propensão para o espetáculo, como o gardeliano Menem, ele passou a ser considerado o candidato que poderia vencer apenas por ser o “menos ruim”. De fato, ele teve somente 22% dos votos, contra 24% dados a Menem, que desistiu para evitar uma fragorosa derrota no segundo turno.

O crédito de Kirchner veio pelo fato de, logo no início, ele ter
feito uma faxina em instituições intocáveis. No caso das Forças
Armadas, o presidente passou para a reserva 27 generais, 13
almirantes e 12 brigadeiros, reestruturando completamente a cúpula militar e limpando os comandos formados durante a ditadura. Além
desse expurgo, Kirchner anulou um decreto que impedia a extradição
de oficiais acusados de violação de direitos humanos e promoveu o fim das leis de anistia aos militares, chamadas de “obediência devida” e “ponto final”. O mandatário também investiu contra a Corte Suprema, inflada para dar maioria ao ex-presidente Menem. Em 27 de junho, o presidente da Corte Suprema, Julio Nazareno, não resistiu às pressões e pediu o boné. Pesavam sobre ele 22 denúncias. Quatro meses depois, outro juiz renunciou. Na esfera econômica, Kirchner também surpreendeu. Em setembro, o presidente anunciou que não pagaria ao Fundo Monetário Internacional (FMI) o serviço da dívida de US$ 2,9 bilhões, condicionando o pagamento à renegociação de um novo crédito, que deveria garantir
a reposição das reservas da Argentina, país que amarga uma dívida externa de US$ 146 bilhões.

“Entre a expectativa que havia em 24 de maio e o balanço de hoje, o resultado é muito positivo. Antes de assumir, ninguém sabia quem ele era nem sua autoridade sobre o peronismo. O presidente deu respostas e isso trouxe estabilidade ao governo”, disse a ISTOÉ Eduardo van der Kooy, analista do diário Clarín. Já Artemio López, da consultora Equis, diz que a falta de carisma de Kirchner acabou jogando a seu favor. “Sua figura de anti-herói, nesse sentido, é um atributo. Eu creio que o marketing
político tradicional dos anos 90, de espetacularização da política, se esgotou. Kirchner é exatamente o contrário dessa forma de associar a política com as pautas publicitárias e de vender um candidato como se fosse um produto. Ele é claramente o anticandidato e isso, na Argentina hoje, se constitui num valor.” Exatamente como aconteceu com o Tio Cámpora, mas, agora, felizmente, sem as ilusões messiânicas da juventude peronista.