Raí Souza Vieira de Oliveira, paulista de Ribeirão Preto, 38 anos, foi um dos jogadores mais completos e vencedores da história recente do futebol brasileiro. Tímido, bonito, dono de elegância e discrição estranhas ao universo dos boleiros, ele poucas vezes se desmancha em gargalhadas. No máximo, um sorriso contido, leve, quase sempre um torpedo dissimulado que, ali, combinado ao resto, faz cair queixos e altera temperaturas femininas ao seu redor. Mas, dias atrás, durante uma longa entrevista a ISTOÉ, as gargalhadas foram inevitáveis. Raí lembrava uma conversa recente com um menino pobre de nove anos do bairro carente da Vila Albertina, zona norte da capital paulista. “Ô tio, você jogou bola?”, disparou o moleque com a calma de um monge. Do outro lado estava o meia de toques refinados, faro de gol e passadas elegantes, que saiu do Botafogo de Ribeirão Preto para ser quatro vezes campeão paulista, campeão brasileiro, bicampeão da Libertadores e campeão mundial interclubes em 1992 pelo São Paulo; campeão francês e bicampeão da Copa da França pelo Paris Saint-Germain; e campeão da Copa de 1994 com a Seleção Brasileira. “Joguei”, respondeu seco o tio. “Você foi o que, mesmo? Goleiro?”, devolveu o garoto. Contrariado, o ex-jogador explicou que levava às costas o número dez e jogava naquele pedaço do meio campo destinado aos craques que sempre fizeram a diferença. “Tive vontade de pegar no braço dele, levá-lo para minha sala, colocar uma fita e dizer: veja aí os gols que fiz, seu moleque!”, conta Raí. “Parei de jogar em 2000. Aqui, os mais velhos conhecem um pouco da minha história. Mas, abaixo dos nove anos, eu não passo do ‘tio Raí da fundação’, um cara famoso e procurado por uma coisa que eles não sabem exatamente o que é”, define.

O episódio engraçado mostra que Raí, escolhido por ISTOÉ o Brasileiro
do Ano no Terceiro Setor em 2003, é um desses casos raros de
pessoas que nascem, crescem, escolhem uma atividade, consagram-se nela e, quando a colheita de louros parece ser o único caminho, reinventam a vida, abraçam outra atividade e conquistam um sucesso igualmente estrondoso. No final de 1998, pouco antes de encerrar a carreira brilhante nos gramados, uniu-se a outro craque vencedor, o amigo Leonardo, campeão brasileiro em 1987 pelo Flamengo, onde foi revelado, e companheiro de glória do craque paulista no São Paulo,
no Paris Saint- Germain e na Seleção. Os dois arrancaram, sem piscar, US$ 1,2 milhão dos próprios bolsos para abrir a Fundação Gol de Letra, um trabalho que se transformou numa das principais referências do País nas áreas de inclusão social e assistência educacional. “Não me canso de chamar a atenção para a participação fundamental do Leonardo. E também de dividir com ele todas as homenagens, das simples às de peso, como esta”, lembra Raí.

O elogio não é apenas fruto da elegância habitual de Raí. Hoje na sua melhor fase, a Gol de Letra complementa, nas unidades de Vila Albertina e Itaipu, em Niterói (RJ), cidade natal de Leonardo, a educação de quase mil crianças e jovens de sete a 21 anos. O trabalho é baseado em três pilares: arte, esporte e aprimoramento
de leitura e de recursos da língua portuguesa. Em São Paulo, há programas como o Virando o jogo, para ampliar o conhecimento de crianças entre sete e 14 anos fora do horário das aulas, com música, teatro, artes plásticas, esportes, leitura, escrita, informática e brinquedoteca.

Outra idéia plenamente aprovada foi a da criação de uma biblioteca no espaço paulistano. Além das crianças, qualquer morador da região pode se cadastrar e levar emprestado um dos sete mil livros do acervo. Com isso, nos últimos meses, os educadores viram o número mensal de retiradas saltar de 350 para mil. Em Niterói, as ações principais são os programas Dois Toques, com propostas semelhantes aos do Virando o jogo, e Aprendizes, que forma jovens de 14 e 15 anos para atuar como monitores e representar a fundação em atividades externas. “A Gol de Letra foi a minha principal inspiração”, admitiu recentemente o lateral Cafu, criador de uma fundação semelhante no bairro da periferia de São Paulo em que foi criado, o Jardim Irene. “É emocionante ver a formação humanista recebida de nossos pais e a sensibilidade do Raí concretizadas neste belo trabalho em parceria com o Léo”, comove-se outro ex-craque que o conhece muito bem, o irmão Sócrates, o Doutor. “Amo meus filhos da mesma forma, mas, devo confessar, o Raí é o que mais paparica a mamãe”, confessa dona Guiomar, a mamãe. O pai, Raimundo, se recupera de tratamentos médicos recentes. Completam a família os irmãos Sóstenes, Sófocles, Raimar e Raimundo.

A precocidade marcou a vida
de Raí. Foi pai pela primeira vez aos 18 anos. Hoje, além das filhas Emanuella e Raíssa, diverte-se
com Naíra, a neta prestes a completar cinco anos. Não é mais casado com Cristina, a mulher que o acompanhou desde a adolescência em Ribeirão. Mas o detalhe não serve para abalar a grandeza de sempre. “Cristina e o técnico Telê Santana, o mestre, foram as duas pessoas mais importantes na minha trajetória”, garante. A passagem por Paris deu luz aos seus ímpetos sofisticados. Abria mão do carro para, no metrô, ler Victor Hugo,
Honoré de Balzac, Mallarmé e Rimbaud. Fazia isso enquanto esperava a estação mais próxima dos pontos de treinamento ou do restaurante
onde iria tomar uma taça de vinho tinto da região de Bordeaux.
Aprecia muito o clássico Chateau Petrus. Nessa época, lembra, leu pelo menos umas quatro vezes As flores do mal, de Baudelaire. Voltou à faculdade para estudar filosofia e, hoje, emociona-se com descrições mais simples. Gosta de contar a história de uma menina da fundação que chegou em segundo lugar numa corrida e desabou nos braços do treinador, chorando de forma descontrolada. “O professor disse: ‘Não chore, menina! O segundo lugar e a medalha de prata são ótimos!’ E a garota respondeu: ‘Não é por isso, professor. É que nunca tanta gente assim torceu por mim e gritou o meu nome ao mesmo tempo.’” Silêncio, olhos marejados. Raí, definitivamente, venceu no mundo dos boleiros como um estranho, um ilustre estranho.