A nova versão do filme King Kong (King Kong, Estados Unidos, 2005), com estréia mundial na quarta-feira 14 e no Brasil dois dias depois, tem várias leituras. A primeira, claro, é a velha fábula da bela conquistando a fera – narrativa com raízes tão pré-históricas quanto o primata que figura nas telas. Para o diretor Peter Jackson – ele próprio um monstro sagrado de Hollywood, que, depois de seu gigantesco sucesso com a trilogia de O senhor dos anéis, faz aquilo que bem entende na indústria –, trata-se de uma parábola ecológica. Sob este ângulo, há o protesto contra a exploração da natureza, principalmente da fauna, pelo homem em busca do vil metal. O próprio cineasta também confessa que a primeira versão de King Kong, clássico de 1933, dos diretores Merian Cooper e Ernest Schoedsack, é uma obsessão infantil. Jackson tentou refilmar a obra três vezes, a primeira aos 12 anos, munido de uma câmara super-8, um símio de borracha e uma estola de pele de raposa tirada do guarda-roupa de sua mãe.

Nas entrelinhas da produção de agora, lê-se o tributo claro ao cinema, com referências tão óbvias quanto um gorila de quatro toneladas. Já os olhos mais cínicos – a despeito das maravilhas tecnológicas e milionários efeitos especiais – vêem, em última instância, a história de um macacão sensível que gosta de brincar de Barbie. Tirem-lhe a boneca e a besta fica fula da vida.

Os mesmos observadores debochados insistem em saber a razão desta refilmagem. Afinal, o macaco já havia retornado à sofrida Manhattan em outra oportunidade, escalando as torres do World Trade Center, e, naquela ocasião, com indisfarçável apetite sexual por uma exuberante Ann Darrow (a Barbie da vez), incorporada pela lânguida Jessica Lange. Aquele gorila foi entregue às baratas nas bilheterias e, ao pé da letra, com o boneco de dez metros sofrendo a indignidade de ficar jogado no terreno hoje ocupado pelo Battery Park – ao sul de Manhattan – durante meses. Não apenas os insetos fizeram o que quiseram com o bichão, mas as crianças o escalavam, os adolescentes tentavam incendiá-lo, e o cineasta Marco Ferreri usou o monstro como parte do cenário de seu Ciao maschio (1978). Depois dessa, esperava-se que o símio avantajado fosse deixado em paz.

Obstinação – Mas não, Jackson, o obstinado, tinha de dar vazão a seus impulsos de moleque. E esta parece ser justificativa suficiente, em se tratando de um mestre do cinema do século XXI, com sua inacreditável capacidade de efeitos especiais. Muito se falará sobre as maravilhas digitalizadas para este filme. Por exemplo: a Nova York de 1933, recriada em detalhes que vão da vista panorâmica que inclui o Brooklyn da época e também os confins de New Jersey até o conteúdo de vitrines de Times Square ou as maçanetas das portas nas ruas onde as ações transcorrem. E mais: a fabulosa composição da ilha da Caveira, onde vivem Kong, dinossauros, insetos gigantes – com baratas do tamanho de um jet ski – e uma tribo de zumbis selvagens mais repelentes do que estes bichos. Com um orçamento de US$ 200 milhões, três anos de filmagens, três horas de espetáculo, e material humano de primeiro time, Jackson seria capaz de transformar em sucesso até a refilmagem de um dramalhão mexicano.

Há inovações, mesmo em se tratando do requentar de um clássico. Jackson une a perfeição dramática do ator Andy Serkis – o inglês famoso por sua interpretação do personagem Gollum, na trilogia O senhor dos anéis – ao que há de mais recente em tecnologia cinematográfica. Foram utilizados 100 computadores de última geração, cada um produzindo num dia apenas um minuto de espetáculo. Serkis foi a Ruanda, Uganda e ao zoológico de Londres para estudar durante seis meses o modus vivendi de gorilas. Ele é quem deu os contornos de King Kong para que os artistas gráficos digitalizassem a criatura de dez metros. O ator é o exemplo mais bem acabado do que está se transformando a arte da interpretação no cinema. Um novo tipo de profissional invade as telas: aquele que tem bilhões de faces – tanto pode ser um monstrinho gosmento, quanto, digamos, Marilyn Monroe. Um mímico excepcional, cujos trejeitos os computadores captam e transmudam em algo totalmente diferente. O curioso é que os fãs terão dificuldade em reconhecer seu rosto. No Regency Hotel – onde aconteceram as entrevistas da equipe à imprensa –, o correspondente de ISTOÉ entrou no elevador com Serkis, sem distinguir sua persona civil. Este anonimato, porém, não parece afetar seu ego. “Não tenho nenhum problema em passar despercebido. Sob certos aspectos é até melhor: não tenho de lidar com paparazzi. Quem me dá emprego sabe me reconhecer”, disse Serkis a ISTOÉ, quando foi propriamente notado.

Lágrimas – Jackson transformou o ator Jack Black – de carreira distintamente cômica – num jovem Orson Welles – o cineasta maldito – e lhe deu seu personagem de maior profundidade. Ao sério, sensível e cabeça Adrien Brody (de O pianista), o diretor abriu as portas para o papel de galã romântico de filme de ação, o que é, no mínimo, original. Colocou a inglesa Naomi Watts na pele de uma típica atriz de cinema mudo, que faz do rosto sua principal ferramenta de interpretação. E, com os computadores, criou os olhos de Kong, que são a alma do filme, responsáveis pelos melhores diálogos com a platéia e provocadores de lágrimas copiosas em vários espectadores. São olhos com potencial para fechar a boca dos cínicos.