O garoto Edson Carvalho Vidigal voltava de um banho com vários moleques no rio Itapecuru, em Coroatá (MA), quando presenciou um incêndio que destruiu as casas de palha da rua onde morava sua mãe. “O que está acontecendo?”, perguntou a um adulto, que devolveu: “É a política.” Era o início da década de 50 e o Maranhão ardia nas chamas do maniqueísmo de seguidores e opositores do governador Victorino Freire. Os incêndios eram corriqueiros. Bastava jogar uma lente de aumento no teto de um casebre, sob sol forte, para provocar a faísca. Aos seis anos, Edson não sabia que os crimes eram cometidos pelo suposto “bem” para culpar o suposto “mal”. Anos depois, quando já compreendia as armadilhas da política, decidiu se libertar das paixões e das amarras ideológicas, tornando-se um personagem difícil de ser catalogado. Cinco décadas e meia depois, Edson Vidigal exercita as lições da vida como presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), alterando a rotina da corte como o mais popular de seus integrantes.

O primeiro vestígio de insubordinação foi o dia de seu nascimento: 20 de julho de 1944, data do atentado contra Adolf Hitler. A injustiça, Vidigal já conhecia do ventre. Por preconceito, seu pai foi proibido pelo avô, um comerciante, de se casar com sua mãe, uma costureira filha de negros. Até hoje ele não sabe dizer com certeza qual é sua cidade natal: Caxias (MA), onde foi registrado, ou Teresina (PI), onde sua mãe se escondeu para dar à luz. Aos cinco anos, a mãe o levou para ser criado por um casal de compadres em Caxias.

Vidigal está no terceiro casamento, tem seis filhos, cinco netos e coleciona cicatrizes de vida pouco comuns entre figurões de seu quilate. A pobreza o forçou a experiências que ajudam a explicar a fixação na defesa de uma Justiça mais rápida, sensível e eficiente. Foi moleque fujão, dormiu em praças, trabalhou como garçom de botequim e jornaleiro. O destino só começou a mudar quando se tornou líder estudantil, jornalista e, finalmente, o bacharel em direito que ajudou a costurar a aliança do PMDB de Tancredo Neves com o PFL de José Sarney. Foi Sarney quem o indicou para a alta corte em 1987.

Não é só pela biografia que Vidigal destoa da pompa e da sisudez do Judiciário, mas pela alergia à burocracia e às liturgias do cargo. “Parece fantasia do Clóvis Bornay, coisa de cardeais do século XVI”, resmunga, ao vestir togas e becas para as sessões do tribunal ou posar para fotos, duas atividades pelas quais tem apreço. Ele se projeta como pop star no palco modorrento do Judiciário por dois motivos: vaidade mesmo e por considerar que o poder público tem obrigação de prestar contas ao patrão – “o povo brasileiro” – e politizar a sociedade. Não tem papas na língua nem se esconde na cômoda tradição que desaconselha os homens de toga a mexer com assuntos polêmicos. É a favor da aprovação da união civil de pessoas do mesmo sexo e acha que a decisão do aborto deve caber às mães. Com tantas idéias avançadas, por que não fez carreira em partidos de esquerda? “Gosto de ficar no centro para ter liberdade de ação. Sou pragmático.”

Deputado federal eleito em 1978 pela Arena, Vidigal espalha idéias estranhas ao partido que sustentou os militares. “O dano irreparável do regime foi a castração das vocações políticas que o movimento estudantil preparava”, condena. Para ele, o movimento estudantil era uma espécie de filtro dos bons, pela intolerância com os deslizes éticos. “A decadência de valores na vida pública é decorrência dessa corrosão.” Antes de chegar à Câmara, Vidigal conhecera a brutalidade da lei ao ser preso três vezes por motivos políticos. Como jornalista, arrancou das redações o instrumental – “mais até do que o curso de direito” – para atuar como juiz. “Jornalista trabalha com pressa, texto e exatidão, tudo o que um juiz precisa.” Ele defende sua corporação, mas coleciona frases nada festejadas pelos parceiros. Diz que o Judiciário “é o único dos poderes que mantém os pés na monarquia, pelo conservadorismo e pela burocracia extrema”.

A casa em que mora com a mulher, Eurídice, no Lago Sul, em Brasília, é aconchegante, mas não chega a ser um protótipo de casa de ministro do STJ em um país onde o poder enriquece. A alegria do ambiente é reforçada por cores quentes, tango e música caribenha, incontáveis suvenires e móveis atípicos desenhados pelo próprio. A liturgia do cargo garante a mordomia de um dos 37 carrões que o presidente comprou para o STJ, uma frota que custou R$ 5,4 milhões. Mas sua relação de bens é admirável: além da casa, que comprou em sociedade com a mulher, e de outra bem simples na maranhense Caxias, tem só um Voyage 83, no Maranhão, e um Ford K 1999, em Brasília.

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A superexposição na mídia não é sua única ação de combate à imagem de lentidão e à insensibilidade social do Judiciário. Em 20 meses, ele já instalou 183 varas federais e tem projeto para mais 400. Criou dois turnos de trabalho no STJ e uma rotina de três distribuições de processos por dia. Em 2004, o tribunal julgou 241 mil processos, 11% a mais do que no ano anterior. As sessões de julgamento na Justiça idealizada por Vidigal seriam por videoconferência, para economizar e acelerar os processos. Os computadores do STJ já têm certificado de segurança para que a circulação de processos e documentos não continue nas épocas de papel, traça e lentidão. Novos tempos, mais adequados a uma sociedade enfastiada de burocracia e discursos estéreis. “Erudição jurídica em excesso faz mal à democracia”, costuma dizer Vidigal. Nas citações, ele prefere artistas populares a ícones do direito. Em seu discurso de posse, começou citando o grupo carioca Rappa: “(…) paz sem voz não é paz, é medo.”


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