Delfim Netto faz coro ao discurso do governo, diz queo FMI pautou FHC e dá a receita de como investir em desenvolvimento na compra dos caças para a FAB

O deputado Antônio Delfim Netto
(PP-SP), 70 anos, é um dos mais conceituados economistas do País e
faz parte do seleto grupo de formadores de opinião dentro do Congresso
Nacional. Sua biografia política se
mistura à história recente do Brasil. Polêmico, para muitos Delfim é tido como um dos principais responsáveis pelo endividamento externo do País e formulador, nos tempos do “milagre econômico”, da teoria de deixar o bolo crescer para depois dividi-lo. Mas ninguém pode negar que ele carrega,
em sua extensa folha de serviços prestados à Nação, a marca de principal protagonista de uma política econômica que fez o Brasil crescer mais de 10% ao ano, durante os governos militares de Costa e Silva (1967 a 1969) e Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974).

Na última semana, em entrevista a ISTOÉ, Delfim encampou o discurso
do governo de Luiz Inácio Lula da Silva ao concordar com a tese de
que o Brasil está preparado para voltar a crescer. “Já estamos crescendo. Em 2004, acredito que cresceremos entre 3% e 3,5%. Não
é nada brilhante, mas as bases para a retomada do desenvolvimento estão consolidadas”, disse. Dono de um humor refinado, Delfim, afirma que a única coisa feita pelo governo de Fernando Henrique Cardoso
foi o controle da inflação, mas que a política econômica de FHC não era do PSDB, e sim do FMI. “Agora, o ex-ministro José Serra tenta liderar a oposição e isso é legítimo”, afirmou em relação às críticas feitas pelo tucano à atual política econômica.

Incansável desenvolvimentista, Delfim visualiza na licitação feita
pela Força Aérea Brasileira para a aquisição de caças supersônicos
uma oportunidade ímpar de o Brasil se desenvolver técnica e economicamente. “Desde que a licitação não considere apenas preço, mas transferência de tecnologia efetiva, esse investimento poderá nos colocar no patamar de exportadores desses mesmo aviões, o que fará crescer a indústria nacional de aeronáutica e todo o seu entorno”, afirma o deputado. Segundo ele, o Congresso será sensível a uma detalhada análise do contrato para a compra dos caças e não permitirá que o Brasil faça um investimento de milhares de dólares apenas tendo em troca, por exemplo, a possibilidade de exportar frangos. A seguir, trechos da entrevista concedida pelo deputado:

ISTOÉ – No governo é unânime o discurso de que as bases econômicas para o Brasil voltar a crescer estão consolidadas. No entanto, o ex-ministro José Serra, ao assumir a presidência do PSDB, disse que o País caminha de forma ?lenta, gradual e segura? para o atraso. Como o sr. avalia isso?
Delfim Netto

 O Serra fez apenas um jogo de palavras. O que é natural, pois ele pretende assumir a liderança da oposição, mas certamente isso é apenas um discurso.

ISTOÉ – Por quê?
Delfim Netto

Na passagem de um governo para o outro, o governo de Fernando Henrique Cardoso deixou uma situação muito delicada para Lula. Estávamos arriscados a perder, na verdade, a única coisa que aconteceu no governo tucano, que foi o controle da inflação. E, para isso, o governo anterior não usou uma política inventada pelo PSDB.
Para controlar a inflação, os tucanos adotaram a política que o FMI
impôs ao PSDB quando reelegeu Fernando Henrique. O resultado é que essa política funcionou e continua funcionando.

ISTOÉ – Então nada mudou. A política adotada pelo governo Lula é a mesma imposta pelo FMI ao PSDB?
Delfim Netto

Nós tivemos três intervenções do FMI durante o governo FHC. Uma em 1998, que foi muito interessante e salvou o Brasil, que estava quebrado. Naquele momento, o PT não estava preparado para assumir
o governo. O programa do PT era horroroso. Então, o FMI impôs um programa melhor, que foi o segundo mandato de Fernando Henrique. No fim desse segundo mandato, o Brasil quebrou de novo. Então, veio o FMI e nos salvou mais uma vez. E foi exatamente o empréstimo do Fundo que permitiu uma sucessão tranquila de Fernando Henrique para Lula. O Brasil deveria levantar as mãos e agradecer ao FMI duas vezes.
 

ISTOÉ – E agora há a perspectiva de que tenhamos de ser salvos novamente?
Delfim Netto

 Não. Acho que as coisas estão caminhando muito bem. Na
minha opinião, agora o governo Lula fez um acordo bastante razoável com o Fundo. Não há razão para imaginar que precisaremos de mais coisas. Este acordo é preventivo. Os recursos estão lá para ser usados em caso de dificuldade, mas sempre é uma reserva que tranquiliza o País, tranquiliza o mundo, tranquiliza os credores. Não vejo razão para dizer que caminhamos para o atraso. Mas acho que é preciso organizar uma oposição e o que o Serra fez foi uma tentativa disso, o que é perfeitamente legítimo.

ISTOÉ – Então, o sr. compartilha da idéia de que o Brasil está pronto para voltar a crescer?
Delfim Netto

 O Brasil já está crescendo. Não teremos agora, em 2004, uma coisa muito brilhante, talvez 3%, 3,5%, mas as condições para um crescimento maior estão sendo criadas.
 

ISTOÉ – Então, o sr. compartilha da idéia de que o Brasil está pronto para voltar a crescer?
Delfim Netto

 O Brasil já está crescendo. Não teremos agora, em 2004, uma coisa muito brilhante, talvez 3%, 3,5%, mas as condições para um crescimento maior estão sendo criadas.
 

ISTOÉ – O sr. tem dito que a licitação feita pela Força Aérea Brasileira para a compra de caças pode representar um salto de desenvolvimento para determinado setor ? no caso, o aeronáutico e todo o seu entorno. De que maneira isso pode ocorrer?
Delfim Netto

Trata-se de uma oportunidade fantástica para isso, desde que seja feita da maneira correta. Essa compra deve ser feita com muito cuidado. Não se deve olhar apenas o preço. A definição não pode ser o preço, desde que, é claro, as diferenças não sejam tão absurdas. O preço é apenas um dos fatores. O crucial é um offset (compensações advindas de uma compra internacional) muito bem ajustado.
 

ISTOÉ – O que é um offset bem ajustado?
Delfim Netto

 O mais inteligente e também o que é normal em todo o
mundo é usar os offsets de maneira que se construam no local que
está importando complementos da própria indústria que está
exportando. Só assim se garante a tão desejada transferência de tecnologia, trazendo consigo desenvolvimento técnico e econômico.
Esse é o grande benefício desses investimentos.
 

ISTOÉ – Como aplicar esses conceitos na compra dos caças para a Força Aérea?
Delfim Netto

 Vamos comprar aviões supersônicos, que são coisas
caríssimas, de tecnologia de ponta. Um investimento enorme, uma operação que envolverá um crédito de longo prazo, que pressionará o Orçamento anual pelo valor das amortizações, mais juros ao longo de
dez anos ou mais, mas que produzirá um aumento imediato no endividamento externo. Então, o que se espera desse investimento
são offsets privilegiados. Ou seja, deveremos trazer um pedaço do
que está sendo comprado para ser produzido aqui, dentro do Brasil.
É um up grade definitivo para a nossa indústria.
 

ISTOÉ – Concretamente, como isso pode ser traduzido em termos de crescimento econômico, e não apenas tecnológico?
Delfim Netto

Está sendo cogitada para agora a compra de 12 aviões. Mas, certamente, não iremos parar nos 12. Precisamos de outras compras semelhantes para atender às reais necessidades da Força Aérea. Então, precisamos conduzir essa licitação de tal forma que, quando tivermos
que fazer uma segunda compra, um pedaço dela já estará sendo produzido internamente. Isso ocorre em progressão geométrica. Depois de duas, três compras, se as coisas caminharem como se imagina, estaremos produzindo o equipamento aqui mesmo. Para se adquirir tecnologia, não basta uma carta de boas intenções. Ela vem junto
com o equipamento. E o efeito multiplicador disso é enorme. Para fazer uma determinada peça, por exemplo, pequenas indústrias irão se formar em torno da base. Aos poucos se altera a geometria do espaço. Ou seja, montam-se sistemas que vão começar a atrair outras indústrias.
 

ISTOÉ – Há exemplos de casos semelhantes que obtiveram sucesso?
Delfim Netto

Isso é muito comum entre países do Primeiro Mundo. Não
se trata de uma relação apenas de países ricos para países em desenvolvimento. Investimentos como esses, que trazem tecnologia,
são mais eficazes do ponto de vista de modificações de produtividade
do que o investimento direto sem transferência de tecnologia. Um exemplo típico de offset bem trabalhado foi feito pela Coréia do Sul. Eles importaram 40 caças F-15 por US$ 4,4 bilhões. Para oferecer os aviões, a Boeing ofertou offsets no valor de US$ 3,3 bilhões. Como? Fez um projeto para instalar dentro da Coréia do Sul, durante a entrega desses 40 F-15, uma indústria de F-15. Assim, em 2015, a Coréia será um exportador desse avião. Esse é o verdadeiro offset.
 

ISTOÉ – Mas tem se falado muito, no caso da compra da FAB, em contrapartidas de exportação.
Delfim Netto

Isso é bobagem. Imagina se a Coréia fosse trocar a compra dos F-15 por exportação de árvore-de-natal. O offset com exportação em geral é uma falácia. Vamos supor que fôssemos fazer o offset desses caças com frangos. Ficará estabelecido que o país que vier a vender os aviões irá comprar mais X toneladas de frango brasileiro durante X anos. Ora, ou o país que está comprando consome esse frango e, nesse caso, já poderia estar comprando da gente, ou ele vai comprar e revender para outro, que, em tese, era ou poderia ser nosso cliente. Por isso, offset como esse não tem controle de qualquer natureza e se desmancha no ar.

ISTOÉ – Então, qual é a receita para se otimizar ao máximo possível a compra dos caças?
Delfim Netto

Em primeiro lugar, é preciso ter a absoluta clareza de que
esta não é uma questão meramente militar. O governo precisa trabalhar com a perspectiva de que esse contrato deve ir muito além do que a simples compra de aviões. Esse investimento só será válido se vier com um offset profundo. Nós não vamos ficar só com 12 aviões, vamos comprar mais. O que temos de fazer é que o offset seja efetivamente
um up grade na direção de diminuir a importação no futuro. Há setores em que essa compra trará vantagens comparativas importantes para o Brasil. Esse setor será desenvolvido. Então, em quatro ou cinco anos, terminada essa primeira entrega, o Brasil poderá estar exportando partes desse avião, inclusive para o próprio país de origem, de tal forma que vamos nos introduzindo num mercado. Isso é definitivo, pois passaremos a ser exportadores competitivos, pois já temos uma base competitiva na indústria aeronáutica.
 

ISTOÉ – Para a aprovação do financiamento esse contrato deverá ser submetido à aprovação do Congresso. O sr. percebe preocupação dos parlamentares com essas questões?
Delfim Netto

 Volto a dizer que se trata de um investimento que traduz uma real oportunidade de desenvolvimento. Então, é claro que o Congresso será sensível a essas questões. Isso vai muito além da questão militar. Temos que analisar tudo, as vantagens de uma troca como essa. As comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado deverão esmiuçar ao máximo esse contrato. Acredito que a pressão do Legislativo será na direção correta, que acho seja a mesma do Executivo. O governo tem acertado muito nas questões macroeconômicas.
 

ISTOÉ – E nas micro?
Delfim Netto

 Em nível micro, acho que o governo tem deixado a desejar.

ISTOÉ – Por exemplo?
Delfim Netto

Um caso típico do que estou falando é esse atraso lamentável na regulação da energia elétrica. Isso irá nos cobrar um preço.
 

ISTOÉ – Qual o preço?
Delfim Netto

 O governo precisa fazer essa regulação com urgência.
Se não o fizer, não haverá investimento no setor. Isso significa
que, em dois anos de crescimento razoável, quando se ocupará a capacidade ociosa de hoje, teremos que parar. Isso vale para toda a infra-estrutura. Tudo isso exige absoluta regulação, respeito à propriedade privada, respeito aos contratos, respeito a tudo o que foi assinado, mesmo que tenha sido mal assinado.
 

ISTOÉ – Mas o governo já deu várias demonstrações de que respeita os acordos já firmados.
Delfim Netto

 Sim, mas não o suficiente. Quando o Movimento dos Sem Terra faz essas trapalhadas que tem feito, está violando regras fundamentais do direito privado. Nada disso estimula o crescimento. O governo ainda tem muita coisa para fazer. Tem que desburocratizar, fazer uma verdadeira reforma tributária…
 

ISTOÉ – A reforma tributária não está na fase final de aprovação?
Delfim Netto

Isso que está ai é um remendo. Útil, mas apenas um remendo.
 

ISTOÉ – O que o sr. chama de verdadeira reforma tributária?
Delfim Netto

 A verdadeira reforma tributária deve atrair para dentro do PIB toda a atividade informal que está fora, o que é uma barbaridade.

ISTOÉ – Se é válida a máxima de que uma reforma tributária se faz no primeiro ano de governo ou não se faz mais, o sr. acredita, então, que o governo Lula não fará essa reforma?
Delfim Netto

Acho que a proposta apresentada não era boa e que o momento não foi o melhor possível. Ninguém faz reforma tributária em momento recessivo, quando está todo mundo apertado.
 

ISTOÉ – Nesse caso, então, o sr. entende que para o governo Lula o melhor será voltar à questão tributária no último ano de governo?
Delfim Netto

 Eu prefiro assim.
 

ISTOÉ – E a reforma da Previdência?
Delfim Netto

 Essa é muito melhor. Ela é razoável e nos dará a tranquilidade para os próximos oito ou dez anos.