Na semana passada, a Organização
das Nações Unidas (ONU) revelou que o
mundo está longe de vencer a batalha
contra a Aids. Esperava-se, com todos os esforços empreendidos nos últimos anos,
que a velocidade de transmissão da doença diminuísse. Mas isso não ocorreu. Relatório
do programa de Aids da ONU, a Unaids,
indica que em 2003 cinco milhões de
pessoas foram infectadas pelo HIV, o vírus causador do mal, e três milhões de portadores morreram devido à enfermidade. É o maior número de mortes e de casos novos ao longo da história da epidemia. Às vésperas do Dia Mundial da Aids – que se celebra na quarta-feira 1º –, o diretor executivo da entidade, Peter Piot, disse que as ações globais estão inadequadas à realidade.

De acordo com o estudo da Unaids, atualmente há 40 milhões de portadores do HIV. Destes, 2,5 milhões são crianças com menos
de 15 anos. O relatório aponta ainda que neste ano a doença foi transmitida a 14 mil pessoas por dia. É um número assustador. Na
análise por regiões, a situação mais alarmante é a da África. Na
porção sul do continente, por exemplo, um em cada cinco adultos vive hoje com o vírus. É a mais alta proporção desde o surgimento da Aids. Além disso, cerca de 30% das pessoas infectadas em todo o mundo moram nessa região. A África do Sul, sozinha, é a casa de mais de cinco milhões de soropositivos, conforme estatística de 2002. É mais do que ocorre em qualquer outro país. Diante de tanto descalabro, a conclusão de Piot é absolutamente verdadeira. “Os dados mostram que os programas não estão sendo eficazes. Eles não estão atingindo as populações”, reforça o médico brasileiro Luiz Antônio Loures, diretor da Unaids para as Américas e para a Europa.

Apesar de preocupante, o relatório não chegou a surpreender a psicóloga Vera Paiva, do programa de prevenção de Aids da Universidade de São Paulo. “Estamos em um ponto em que a questão não é a Aids em si, mas a Aids e os problemas estruturais da sociedade. Sua disseminação é proporcional à pobreza, à falta de remédio e de educação. Se as pessoas não vão à escola, se não têm dinheiro para ir até um posto de saúde, fica difícil controlar a epidemia”, explica. De fato. Na África, a Aids é a principal causa de morte, enquanto no mundo é a quarta. Para o médico Eduardo Sprinz, responsável pela unidade de doenças infecciosas do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS), é preciso se voltar principalmente à população carente. “A epidemia é como um ladrão. Rouba quem está desprotegido. E a maioria das pessoas nessas condições é pobre. Elas têm menos informações”, reforça.

O quadro mundial é grave também porque há cerca de 20 anos se sabe o que fazer. “O conceito de prevenção é o mesmo, como sexo seguro e sangue seguro”, comenta Loures. Segundo ele, há uma combinação de fatores que explica a falta de efetividade dos programas. A insuficiência de recursos financeiros é um deles. “O mundo gasta US$ 3 bilhões por ano envolvendo tratamento e campanhas. Calculamos que seriam necessários US$ 10 bilhões. É uma diferença muito grande”, afirma. Outro problema é a persistência do que chama de obstáculos morais, como a dificuldade de muitos pais de conversar com seus filhos sobre sexo. “A existência desse tipo de barreira prejudica os programas de prevenção da transmissão sexual. É inadmissível que a educação sexual dos jovens não seja prioridade”, completa Loures.

Para os especialistas, é importante focar as ações nesse público. Recentemente, a ONU alertou para o impacto da epidemia sobre o grupo não-adulto. O relatório, que trazia dados de 2002, mostrou que 42% dos novos casos registrados naquele ano eram de pessoas com idade entre 15 e 24 anos. Sinal de que a moçada não tem aderido à camisinha como deveria. Muitos saem para as baladas, encontram alguém e se esquecem de usar a camisinha. Uma das causas desse problema reside justamente nas questões morais. “Temos de conversar diretamente sobre sexo. Os pais devem falar cada vez mais cedo com seus filhos a esse respeito”, completa Loures. Além disso, observa-se em alguns países desenvolvidos uma certa complacência com a doença em razão da existência de tratamento. O comportamento se manifesta principalmente entre homossexuais jovens. A Aids é vista por essas pessoas como uma enfermidade crônica e manejável. Na opinião de Lucinha Araújo, presidente da Sociedade Viva Cazuza – entidade do Rio de Janeiro que abriga 25 crianças soropositivas –, um aspecto “negativo” dos medicamentos é a mudança da cara da Aids. “Os portadores não ficam mais transfigurados como no passado. Quem vê um rapaz lindo não vai imaginar que ele possa ter o vírus. Mas quem vê cara, não vê Aids”, diz. Lucinha defende que os programas devem bater na tecla do uso do preservativo. “É isso que funciona”, afirma.

O diretor do programa nacional de DST/Aids, Alexandre Grangeiro,
pensa da mesma forma. “Devemos parar de insistir naquilo que não
dá certo”, afirma. Ele sustenta que pregar a abstinência sexual ou
basear a prevenção em pactos de fidelidade não ajudam a conter a epidemia. “Abrir mão do prazer vai contra o que as pessoas querem.
Elas mantêm relações sexuais e gostam disso. E fidelidade é um
assunto individual”, esclarece. Grangeiro pondera ainda que pregar
um comportamento ideal significa criar situações discriminatórias.
De acordo com ele, resultados na prevenção só surgirão se houver compromisso efetivo dos governos e também da sociedade. “O que
faz a diferença é a decisão política de implementar um programa
eficiente que passa também por ONGs e pelo setor privado”, emenda.

Esse envolvimento é uma das marcas do programa brasileiro. A Unaids elogiou o trabalho feito por aqui e apontou o País como modelo a ser seguido por outras nações. “O Brasil continua sendo um caso único. Tem mobilização social e recursos financeiros. A Unaids quer que esse modelo se replique no mundo. Esse nos parece o melhor atalho para aumentar a capacidade de lidarmos com a Aids”, declara Loures. Desde julho do ano passado, a experiência brasileira está sendo compartilhada com países da América Latina e da África. Estão no programa de cooperação externa, que consiste
em treinamento, transferência de tecnologia e repasse de remédios,
as seguintes nações: El Salvador, Colômbia, Paraguai, Bolívia,
República Dominicana, Quênia,
Burkina Faso, Burundi, Namíbia e Moçambique. Também devem ser incluídos Botsuana, Angola, Cabo Verde e São Tomé e Princípe.

Ao contrário do que ocorre no planeta, a taxa de crescimento da doença está estabilizada no Brasil. Os dados mais recentes (atualizados até setembro) indicam que os números de novos casos se mantêm em torno de 22 mil por ano. Na década de 90, eram cerca de 25 mil. Em relação à população em geral, as taxas médias de infecção têm sido de 15,2 pessoas por 100 mil habitantes. Ao todo, o País acumula um total de 277.141 casos registrados desde o início da epidemia. Desse total, 70% são homens. O programa nacional alerta, entretanto, que o mal avança entre heterossexuais masculinos (leia mais no quadro abaixo). Neste ano, eles representam 65% das notificações, contra 60% em 2000. Por isso, o governo se prepara para lançar uma campanha voltada para essas pessoas, principalmente aquelas com idade entre 40 e 50 anos. Na semana passada, o ministro da Saúde, Humberto Costa, afirmou que os medicamentos contra a disfunção erétil estão permitindo que homens nessa faixa etária pratiquem mais sexo. E eles não estariam habituados a se proteger. Para aumentar a adesão ao preservativo, em fevereiro serão distribuídas em bares, restaurantes e estádios de futebol cartilhas com o personagem Gatão de Meia-idade, do cartunista Miguel Paiva. O material pretende estimular o uso da camisinha.

Em relação ao programa brasileiro, há mais duas boas notícias. Uma delas é a redução de praticamente 100% dos casos de transmissão por transfusão sanguínea, segundo o governo. Os especialistas comemoram ainda a queda de casos de transmissão vertical (de mãe para filho) por conta do aumento da cobertura do tratamento das grávidas portadoras do vírus (leia mais à pág. 54). No Rio, há outra experiência exemplar. O Projeto Visita Íntima, da Secretaria de Administração Penitenciária, em sete anos reduziu de 15% para 3% o porcentual de contaminação nos presídios masculinos. O programa inclui orientação ao preso sobre sexo seguro e distribuição de camisinhas.

 

Tragédia feminina

As mulheres precisam ficar alertas. Uma pesquisa da Universidade de
São Paulo mostrou que a Aids é a segunda causa de morte entre as brasileiras, vindo atrás das doenças cardiovasculares. O estudo se
baseou na análise de 3,2 mil declarações de óbito de mulheres com idade entre dez e 49 anos. “O levantamento ajuda a definir as prioridades na política de saúde”, afirma Ruy Laurenti, coordenador do trabalho. De fato. O resultado indica que as mulheres precisam se prevenir mais (até setembro, havia 79,8 mil mulheres com Aids no Brasil). Uma das dicas do infectologista Ricardo Hayden, de Santos (SP), é que elas aproveitem os exames
de rotina feitos no ginecologista e se submetam também ao teste de HIV. “Muitos infectados só descobrem a doença quando ela está avançada, o que piora a eficiência do tratamento”, afirma. O mal que mais afeta as brasileiras são as enfermidades cardiovasculares – o derrame cerebral é o principal. “Mas o infarto também é causa importante de morte”, afirma Juarez Ortiz, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. A terceira causa de óbitos é o homicídio, seguido pelo câncer de mama.
 

Eles estão vulneráveis

Os números sobre a epidemia no Brasil divulgados na semana passada pelo Ministério da Saúde trouxeram um dado preocupante: o crescimento da doença entre a população masculina heterossexual. De acordo com o relatório do programa de Aids brasileiro, cerca de 65% das notificações de 2003 são de homens heterossexuais. Todas as possíveis justificativas para esse aumento passam pelo descuido masculino.
“Os homens têm maior número de parceiras não estáveis”, afirma Alexandre Grangeiro, diretor do Programa Nacional DST Aids. Ele também lembra que muitos ainda
não reconhecem a mulher como agente transmissor do vírus e por
isso abrem mão do uso da camisinha, colocando-se em risco. Entre
os homens homossexuais e as mulheres, a epidemia está estável.
Um dos fatores considerados fundamentais para a estabilização da epidemia entre as brasileiras é que, aos poucos, elas têm conseguido negociar o uso da camisinha com seus parceiros. Agora, os homens é que precisam fazer sua parte.