O brasileiro Fernando Ivan Ostrowsky tem 18 anos e está em Moscou desde o dia 4 de novembro. Ele ganhou uma bolsa para cursar direito internacional – “um sonho de infância”, dizia ele em família – na Universidade da Amizade dos Povos, que nos tempos do comunismo era conhecida como Patrice Lumumba. Lá, Ivan, como é chamado, foi acomodado no “prédio de passagem”, um dos edifícios da cidade universitária onde ficam alunos para fazer exames médicos e testes de conhecimento, antes de se instalarem numa residência definitiva. Por volta de 2h da segunda-feira 24 Ivan foi acordado em seu quarto por uma intensa gritaria, vinda do corredor, de pessoas pedindo socorro em meio a um sufocante cheiro de fumaça. O prédio de cinco andares tinha sido atingido por um violento incêndio. Ivan, que estava no último andar, pulou pela janela e caiu no chão, onde a camada de neve amorteceu a queda. Ele dividia o quarto com um africano e um palestino e foi o único sobrevivente do quinto andar. A tragédia provocou a morte de 37 estudantes e ferimentos em mais de 170. Entre os mortos havia 17 chineses, além de estudantes de Angola, Marrocos, Equador, Peru e Cazaquistão.

O brasileiro foi socorrido por uma amiga, Ligia Prestes, 22 anos,
estudante de sociologia na universidade, filha de Mariana Prestes e
neta do falecido líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes.
Ligia, que apresentou a universidade a Ivan e o levou a comprar
roupas de frio em Moscou, morava em frente ao prédio que se
incendiou. Quando viu o amigo se jogar pela janela, ela e o namorado hondurenho correram para socorrê-lo. Os dois levaram Ivan para o
quarto de Ligia e, quando constataram a gravidade dos ferimentos
– duas vértebras trincadas e um braço quebrado –, chamaram um táxi e
o levaram para o hospital, pois não havia ambulâncias suficientes, tal o número de feridos graves. Segundo a família de Ivan, Ligia fez um escândalo no Hospital Universitário 64 para conseguir a internação do amigo no melhor pronto-socorro das redondezas.

A universidade Patrice Lumumba foi fundada na década de 1960 pelo então dirigente soviético Nikita Kruchóv para proporcionar estudos principalmente a jovens militantes comunistas de países do Terceiro Mundo. O nome era uma homenagem ao líder guerrilheiro esquerdista e depois primeiro-ministro (1960-1961) do Congo, Patrice Lumumba, que seria deposto por um golpe militar articulado pela CIA e em seguida assassinado por rebeldes separatistas. A universidade atraía jovens dos países periféricos, dando-lhes educação de qualidade a preços muito baixos, embora com forte caráter doutrinário. Um dos seus alunos mais famosos foi o terrorista Illich Ramírez, conhecido como Carlos, o Chacal.

Segundo o professor da UFBA Jorge Gurgel, que presidiu a associação de estudantes brasileiros na URSS entre 1975 e 1981 e hoje é dirigente do Partido Popular Socialista (PPS), entre os 700 mil estrangeiros que passaram pela universidade, mais de mil eram brasileiros – a maioria ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o “partidão”, que mandava para lá filhos de militantes pobres.

Um dos filhos de Luís Carlos Prestes, João Prestes, também foi aluno da Patrice Lumumba, onde fez engenharia mecânica (1975-1981). “A universidade formava quadros técnicos (médicos, advogados, engenheiros), sem viés político. O problema era a volta ao Brasil. Muitos tiveram dificuldade para reconhecer seus diplomas, pois havia uma circular secreta do Ministério da Educação determinando o não-reconhecimento dos cursos feitos lá”, conta João.

O ex-deputado Salomão Gurgel (PT-RN) também estudou por lá, onde fez curso de medicina e se especializou em psiquiatria. Casou-se com uma russa e hoje o filho dele, Vassile Gurgel, amigo de Ivan Ostrowsky, estuda na mesma universidade e também faz direito internacional. Ele diz que quase tudo era custeado pelo Estado soviético. “Era tudo de graça. Passagem aérea, livros, hospedagem e até recebíamos uma mesada de 90 rublos por mês, que então valia cerca de US$ 80. Dava até para economizar uns 20 rublos por mês.” Salomão morou no edifício reservado para os estudantes de medicina, em frente ao prédio que pegou fogo. Durante sua permanência, seu passaporte não era revalidado e ele só podia viajar para fora da URSS com salvo-conduto da ONU.

Ameaçada com o fim dos subsídios depois da queda do comunismo, a universidade, além de mudar o nome, se adaptou às leis do livre mercado. Hoje, Salomão paga US$ 2,5 mil por ano para o curso do filho. Ainda é uma tarifa muito baixa, comparada com as universidades européias. Por isso, a Universidade da Amizade dos Povos – que tem atualmente 15 mil estudantes – continua a atrair pessoas dos países em desenvolvimento, principalmente da China. Mas a outrora famosa Patrice Lumumba está semi-sucateada. O incêndio revelou “falta de precauções mínimas de segurança”, segundo as autoridades.

 

Vala comum

Em 1991, pouco antes do colapso final da União Soviética, Eduard Shevardnadze escreveu um livro, O futuro pertence à liberdade, em que narra os percalços da democratização da URSS durante a gestão de Mikhail Gorbatchóv (1985-1991). O título do livro se revelaria profético no torrão natal de Shevardnadze, a ex-república soviética da Geórgia: em apenas 13 anos de independência, o país derrubou dois presidentes acusados de abuso do poder – Ziad Gamshakurdia em 1992 e, agora, o próprio Shevardnadze.

Ex-dirigente comunista na Geórgia, Shevardnadze se tornaria chanceler da URSS com a ascensão de Gorbatchóv, atuando
como braço direito na implementação de reformas que pouco
a pouco libertaram os soviéticos da tirania consolidada por outro georgiano, Iossif Djugashvili – mais conhecido como Stálin. “Sherva” participou ativamente do desmonte das estruturas da guerra fria, como a assinatura de tratados de eliminação e redução de armas nucleares, o apoio decisivo à democratização do bloco soviético e à unificação da Alemanha.

De volta à Geórgia, Shevardnadze encarnou os anseios democráticos da jovem república, sendo eleito presidente duas vezes, ambas com maioria avassaladora. Em uma década, ele enfrentou graves ameaças separatistas e uma crise econômica abissal. O presidente também escaparia de dois atentados. Mas não escaparia, porém, da tentação do poder: acusado de corrupção e fraude eleitoral, Shevardnadze foi apeado do cargo no domingo 23 por uma revolução pacífica. Assim, cumpria-se o vaticínio de seu livro, mas com uma amarga ironia: a liberdade fez um dos mais brilhantes expoentes da glasnost acabar na vala comum dos políticos corrompidos.

Cláudio Camargo