Infelizmente as raquetadas que Marcos – personagem de Dan Stulbach na novela Mulheres apaixonadas, da Rede Globo – dava em Raquel (Helena Ranaldi) continuam a zunir por todo o País. A novela acabou há dois meses e o instrumento de agressão pode não ser o mesmo, mas a dor de mulheres que, como a personagem, são vítimas da violência em sua própria casa é uma triste realidade. Segundo pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, de São Paulo, a cada 15 segundos uma mulher sofre alguma agressão no Brasil, num total de 2,1 milhões de vítimas de espancamento por ano, a
maioria de autoria de maridos, companheiros ou namorados.
De posse desses dados, na terça-feira 25, Dia Internacional de
Combate à Violência contra a Mulher, a ministra Emilia Fernandes,
da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, fez um périplo por São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre formalizando parcerias para colocar em prática o Programa Nacional de Prevenção, Assistência e Combate à Violência contra a Mulher. “A idéia é criar uma ação em rede e por isso estamos envolvendo outros ministérios e secretarias para capacitar os profissionais das delegacias a ter uma abordagem adequada do problema”, explica a ministra. No dia seguinte, no Encontro Nacional de Delegados das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam’s), realizado em Brasília, Emilia Fernandes e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, selaram a intenção com a assinatura de um acordo de cooperação.

Lançado oficialmente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em agosto, o programa prevê a criação de centros de referência para a mulher e a ampliação do número das delegacias especializadas e dos abrigos, que atendem vítimas de ameaças de morte. No dia 25, o presidente tomou outra medida de apoio. Pela Lei nº 10.778 tornou compulsória a notificação à Vigilância Sanitária de todo caso de violência contra a mulher atendido em serviços de saúde públicos ou privados. Como violência entenda-se qualquer ação, baseada em gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher. A providência é importante principalmente devido ao número reduzido de delegacias da mulher no Brasil. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 404 municípios (dos mais de 5,5 mil) contam com delegacias direcionadas à mulher.

Apesar da carência de delegacias, no primeiro momento, o foco do governo está em fortalecer e aparelhar as já existentes. “Temos que trabalhar questões culturais, como a tendência de minimizar a importância das agressões só porque acontecem em uma relação conjugal, e definir claramente o papel da polícia nestes casos”, propõe a ministra. Na outra ponta, onde estão as vítimas, a conscientização também é necessária. “É preciso romper o silêncio. A mulher tem que saber que há uma saída e que pode contar com um centro de apoio, orientação e assistência”, explica a ministra. A meta da secretaria é estimular a criação de 800 a 900 delegacias até 2007. O orçamento proposto para 2004 é de R$ 22 milhões para toda a secretaria. Desses, R$ 7 milhões seriam para o programa. Ainda em novembro, foram assinados acordos de treinamento em 192 delegacias de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Tocantins e Minas Gerais, com investimento de R$ 1 milhão da secretaria.

Em São Paulo, as 125 delegacias da mulher existentes registram
em média 88 mil queixas de lesão corporal e 80 mil de ameaças
de morte por ano. Depois da queixa, muitas delas vão para abrigos
como o Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica (Comvida), da Polícia Civil. Lá, elas e seus filhos têm três meses para repensar a vida, conseguir um emprego e outra moradia. “Mais por dependência psicológica e emocional do que financeira, a maioria só denuncia quando está no limite. Elas tentam o convívio de todas as formas e ficam muito fragilizadas pelo pavor que a violência gera”, diz Marlene Caversan, diretora do Comvida.

Poucas mulheres tomam uma atitude logo depois das primeiras agressões como fez a empregada doméstica Aparecida da Silva (nome fictício), 31 anos. Durante dois anos, ela e o companheiro viveram bem. De repente, ele mudou. “Começou a implicar com roupa, vizinhos, tudo. Me proibiu até de abrir as janelas”, conta ela. Começaram as agressões. “Um dia disse a ele que ia embora. Ele concordou e pediu para eu ir comprar pão. Quanto voltei, ele nem esperou eu entrar. Me pegou pelos cabelos, me jogou no chão e começou a me socar”, diz. Aparecida saiu e nunca mais voltou. Para essas mulheres, quando o romance se transforma em inferno, a saída ainda é a fuga. Como se, num processo às avessas, a vítima é que tivesse que ser punida.