Vestido com colete à prova de balas e de costas para a parede, à moda da máfia siciliana, o ecologista carioca Paulo Adário aguardava a chegada do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ao aeroporto de Altamira, no sudoeste do Pará. O coordenador internacional das campanhas em defesa da Amazônia na organização Greenpeace temia engrossar a lista de crimes de violência numa área que abriga várias aldeias indígenas e um dos últimos remanescentes de florestas com madeira de alto valor comercial, entre elas ipê e mogno. Em visita de três dias ao Estado, no início de novembro, o ministro Bastos, acompanhado do procurador-geral da República Cláudio Fontelles, dos diretores da Polícia Federal, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Ministério do Meio Ambiente, discutiu alternativas para combater os conflitos agrários que tornaram a região um cenário de faroeste em plena selva. “Minha vida vale poucos tostões por aqui”, justificava-se o militante que há 11 anos integra as fileiras da organização não-governamental com sede na Holanda. A segurança ao redor das autoridades federais era tanta que Adário e seu fiel escudeiro, o fotógrafo espanhol Daniel Beltrá, decidiram remover o colete à prova de balas para evitar chamar a atenção dos agentes de segurança do ministro, todos de óculos escuros e traje impecável, com aparência de personagens do filme Matrix.

Amotinados por horas numa mesma sala de calor dantesco durante uma audiência pública, estavam inimigos históricos: índios, madeireiros, advogados e parentes de vítimas assassinadas. Cada qual contou sua versão do avanço da exploração madeireira e agropecuária no Estado, que já consumiu 200 mil km2 de floresta, mais de um milhão de estádios do Maracanã, juntos. Frustrado por não ser chamado ao microfone, Adário resignou-se em entregar ao procurador Fontelles o relatório Pará: Estado de Conflito, em que denuncia crimes de grilagem, morte e escravidão no campo, resultado do cruzamento de dados oficiais com informações das patrulhas ecológicas do Greenpeace. Encerrada a missão do dia, Adário, que mora em Manaus com a família, iniciava a jornada de volta para um navio que circula pelos afluentes do rio Amazonas, seu abrigo até meados de dezembro. A primeira etapa da viagem, de pouco mais de uma hora, foi num hidroavião Cessna de quatro lugares. Econômico nas palavras, o líder da campanha saltou na pista improvisada, em Almeirim, onde o esperava um helicóptero vermelho, sem portas laterais, usado para a segunda parte do trajeto. No comando, o piloto escocês Huchie Balfour-Paul, com legítimos uísques de sua terra natal na bagagem, voou poucos palmos acima da copa das árvores até pousar no deque do navio Artic Sunrise, a central de operações da campanha em defesa da Amazônia, uma das sete florestas eleitas como prioridade pela ONG.

Gringos – Dentro do navio onde
dormem e trabalham cerca de 40 ativistas, a maioria estrangeiros, e onde o idioma oficial é o inglês, Adário seria o arauto das notícias de terra firme por algumas horas. Seu primeiro pouso foi no lounge, a sala de descanso repleta de sofás, prateleiras com livros, CDs, filmes, dois violões e uma geladeira apinhada de cerveja. Ali, Adário faz o primeiro brinde com a canadense Anne Dingwall, uma das lideranças do grupo e a manda-chuva do orçamento. Com 27 anos de Greenpeace e residência fixa em Manaus, a fumante inveterada orgulha-se da atual campanha amazônica, cuja principal bandeira é o navio quebra-gelo, onde as mulheres são mais numerosas do que os homens. Anne administra a verba proveniente das doações de três milhões de colaboradores.
Só a campanha da Amazônia tem orçamento anual de 1,5 milhão de euros (R$ 5,38 milhões), ela conta.

O dinheiro é farto no quartel-general ecologista. Além do Artic Sunrise, a esquadra inclui um barco de apoio para navegar em águas rasas contendo dezenas de redes e duas motocicletas, três botes infláveis e algumas regras tão rígidas quanto no Exército. Até os líderes da campanha têm seus dias de limpar o chão. Todos, sem exceção, são obrigados a lavar, enxugar e guardar qualquer peça de louça que usar para comer ou beber. A separação do lixo reciclável e a secagem das embalagens é tão xiita que carece de treinamento. Mesmo quando a noite cai, e a bebida e a paquera rolam soltas, o trabalho não pára.

Dorme-se pouco no navio, onde a vigilância é diuturna. De hora
em hora, há alguém em ronda pelas salas de máquinas sujas de
graxa, onde a temperatura beira os 50o C. Em compensação, não há cansaço que resista ao pôr-do-sol multicolorido, ao balé sincronizado
dos botos cor-de-rosa e aos vôos rasantes de aves e borboletas gigantescas. As noites de luar batizadas a álcool muitas vezes terminam em clima romântico. A prateleira de um dos armários com os itens fundamentais para sobrevivência no navio denuncia. Ali estão, lado a lado, montes de comprimidos para enjôo, repelentes e, claro, camisinhas. O salário também compensa. Quase ninguém fala em valores, mas os ativistas são unânimes em dizer que recebem pagamento superior à média do mercado para suas atividades. Um piloto, por exemplo, ganha mais de R$ 3,5 mil ao mês.

Planejada desde maio, a campanha em defesa da Amazônia esbanja um arsenal de fazer inveja. A fartura é tanta que ofusca a operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que investiga os planos de corte e transporte de madeira na região com 65 agentes em terra, água e ar. Tanto que a ONG colocou à disposição do Ibama um crédito de dois mil litros de combustível para abastecer o helicóptero federal, dos quais o Ibama já usou 400 litros.
A lista de doações inclui ainda rádios comunicadores e telefones por satélite. “Vamos devolver o combustível emprestado e os rádios também, porque estão quebrados”, explica Marcelo Marquesini, coordenador nacional de fiscalização do Ibama. “O que eles mais nos forneceram foram informações.”

Invasão – Acostumados a arriscar a própria vida para salvar baleias e atar-se a navios com carga nuclear, os ambientalistas provaram do seu próprio veneno no domingo 23. O Artic Sunrise navegava perto da cidade de Porto de Moz, quando 17 barcos e duas balsas lotadas de proprietários de terra, políticos e muitos trabalhadores rurais abordaram o navio à maneira do Greenpeace. Primeiro ameaçaram de invasão. Depois, uma comissão subiu a bordo para negociar, enquanto o secretário de turismo se amarrava ao barco em movimento, em sinal de protesto. Os manifestantes acusavam a ONG de atuar como um poder paralelo no Estado. Reclamavam de sua ingerência na fiscalização dos planos de corte de madeira, um assunto de Estado. E se queixavam da interferência dos ativistas em reuniões com comunidades para auxiliar na criação de uma reserva extrativista no baixo Xingu, que no início do século passado foi um pólo de extração de borracha. “Esses episódios são uma prova da ausência da lei e do poder público. Nossa função é servir de catalisador para que o governo se faça presente e aja”, defende-se Adário. Na quinta-feira 27, enquanto circulava por um afluente do rio Xingu, o navio do Greenpeace estava em alerta por conta de ameaças de incêndio e atentado.

O protesto contra a presença dos ativistas desencadeou um verdadeiro jogo de dominó. Começou há duas semanas, quando 300 madeireiros cercaram o hotel onde se hospedavam fiscais do Ibama e funcionários da Polícia Rodoviária Federal, em Medicilândia, a 530 quilômetros da capital Belém. Os brados se prolongaram ao longo da semana passada, quando 200 caminhões, tratores e três mil pessoas sitiaram a cidade de Altamira e fecharam as vias de acesso pela rodovia Transamazônica. “Ninguém entra e ninguém sai, só os doentes, os velhos e os alimentos perecíveis”, dizia o capixaba Luís Bossatto, vice-presidente do Sindicato da Indústria Madeireira da Transamazônica. Os madeireiros reivindicavam a suspensão das multas e a paralisação das ações do Ibama, que na semana passada, aliás, continuava em greve, e se comprometeram a regularizar a extração ilegal no prazo de um ano.

Poder paralelo – Na realidade, qualquer solução será paliativa. Para dirimir os conflitos, o ministro da Justiça acertou com o governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), um plano para mapear e planejar a exploração dos recursos naturais da região, o que inclui florestas de madeira nobre e áreas ricas em minério, em particular o ouro. Só que o projeto é de médio prazo. Enquanto não fica pronta a radiografia da mata, a destruição corre solta. Difícil sobrevoar o Estado sem que os olhos fiquem entorpecidos pela fumaça dos vários focos de incêndio. Em determinadas áreas, não passam 30 segundos sem que se aviste alguma estrada irregular para escoar toras de madeira.

“Dos 12 planos de manejo que vistoriamos, cinco serão suspensos porque estão irregulares e os demais estão sob análise técnica”, contabiliza Marquesini, do Ibama. Boa parte dos conflitos agrários no Pará, ele diz,
está relacionada a irregularidades fundiárias. “Reconhecemos que muita coisa está errada, mas temos que retomar o nosso trabalho sem que os gringos do Greenpeace se metam, e sem que o madeireiro seja visto como o grande vilão da Amazônia”, diz Bossatto. Bem ou mal, ele explica, a atividade madeireira no Estado
gera 26 mil empregos diretos e indiretos. A presença dos ambientalistas e dos fiscais na região paralisou os trabalhos e representou um golpe na economia paraense.

Nas longas e tensas reuniões ocorridas na semana passada, além do abrandamento das multas e das exigências legais, os madeireiros clamavam pela ausência dos ativistas do Greenpeace nas campanhas de fiscalização. Eles alegavam que os ativistas não respeitam fronteiras, invadem terras privadas e depois exibem imagens da destruição para o mundo todo. Com 32 anos de estrada e dez de Greenpeace, o escocês Dave Logie é um exemplo desse espírito destemido e sem limites. Ele já elegeu a campanha da Amazônia como uma das mais emocionantes de sua vida. Em seu currículo, outra ação eletrizante foi em 1998, quando ele acampou nas plataformas petrolíferas da Shell, no gelado mar da Escócia, apesar dos jatos de água lançados pela empresa. Numa rara vitória, os ativistas conseguiram impedir a companhia de despejar no mar um rejeito radioativo que se acumula nos canos de petróleo. Responsável por planejar a logística das ações da ONG na Amazônia, Logie, que vive há dois anos em Manaus, esbanjou seus dotes de aventureiro ao se embrenhar na mata em busca de clareiras denunciadoras de atividade madeireira. A bordo de uma motocicleta, ele venceu troncos e armadilhas feitas para afastar intrusos. Só desistiu da empreitada depois que a moto engasgou ao cruzar um igarapé que cobriu o que antes era uma estrada, às margens do rio Jarauçu. Ainda assim, no trajeto de volta, Logie se esmerou em manobras radicais e acelerou o quanto pôde. O ex-mergulhador profissional explica que abandonou sua terra natal e a antiga profissão por um motivo nobre: salvar o mundo. De preferência, com muitos prazeres pelo caminho.