Jogados no calçadão que emoldura a praia, uma foto da Baía de Guanabara, cartão-postal de uma das cidades mais bonitas do mundo, e um cartucho deflagrado. É assim, logo na capa de Paraíso armado – interpretações da violência no Rio de Janeiro, que os jornalistas de ISTOÉ Aziz Filho e Francisco Alves Filho introduzem o leitor nas 287 páginas de um livro que reúne 18 personagens, entre protagonistas e testemunhas, desse casamento mais do que imperfeito entre a natureza nirvânica de uma terra e sua dura realidade. Revela como tudo começou, o ovo da serpente. São os testemunhos de uma época, como aquelas mensagens gravadas em um disco na sonda espacial Voyager que lançou aos limites do sistema solar imagens e sons que retratavam o planeta Terra. Os relatos gravados nessa sonda carioca – da moradora de favela Valdenir Castilho dos Santos ao traficante Livio Bruni, passando por quatro ex-governadores – mostram acima de tudo que é possível ter diferentes percepções do mesmo problema sem que cada diagnóstico seja menos importante do que o outro. O Paraíso armado de Aziz e Francisco Alves Filho será lançado pela Editora Garçoni no dia 1º na Livraria Travessa de Ipanema. O livro abre a série batizada de Agenda Brasil, que reúne dez grandes temas nacionais.

As entrevistas, subindo e descendo morros, entrando e saindo de gabinetes, buscam, entre tantas questões, a resposta a uma pergunta que está na cabeça de todo mundo: o que deu errado? Quatro ex-governadores são convidados a prestar contas e reconhecem erros. O tucano Marcello Alencar (1995/1998) admite abusos cometidos por sua polícia. Ele lembra ainda  que há 11 anos, quando era prefeito do Rio, a operação conjunta com as Forças Armadas foi encerrada, apesar do êxito obtido durante a conferência Rio 92, porque a cúpula do Exército tinha “pânico de a corrupção se infiltrar nos ambientes militares”. No livro, Marcello ataca a atuação de religiosos nos presídios: “Eu proibiria, por um período, a presença indiscriminada dos pastores, das igrejas, no sistema penitenciário (…). Vejo essa relação com alguma preocupação. A bandidagem toda, se você for visitá-la, está sendo cooptada por essas religiões”, advertiu. Moreira Franco (1987/1990), hoje deputado federal pelo PMDB, fala de sua proximidade com os bicheiros, da gênese da facção criminosa Comando Vermelho e revela ainda que sofreu atentados, nunca levados a público. Um carro de sua comitiva foi metralhado e tiros atingiram o Palácio Laranjeiras. “Quando chegou em frente do Mercado São José das Artes, em Laranjeiras, porra, foi troca de tiros, metralharam o carro todo. Os seguranças reagiram, mas não acertaram ninguém”, conta ele, pela primeira vez, sobre um atentado sofrido nos primeiros meses de sua gestão.

Leonel Brizola, presidente nacional do PDT que governou o Rio por duas vezes, de 1983 a 1986 e de 1991 a 1994, bate na tecla da educação como salvação nacional. Ele cobra uma atitude do governo federal e, para não quebrar a tradição de irreverência, ameaça presentear o presidente Lula com uma cuia de chimarrão coberta com o couro de um touro “que nunca se deixou dominar”. Atual secretário de Segurança do Rio, Anthony Garotinho (PMDB) – governador entre 1995/1998 – atribui ao prefeito Cesar Maia (PFL) os boatos de que tenha feito acordo com traficantes para pôr fim à sequência de atos terroristas que sacudiram o Rio no início deste ano. Ao falar de corrupção policial, condena a cultura do corruptor: “Todo mundo adora dar a cervejinha para o policial”, aponta.

Evolução

Mas é fora dos salões que se encontram os depoimentos mais tocantes. No capítulo A favela e o asfalto, dois tipos da fauna carioca, a mineira Valdenir Castilho dos Santos, moradora de uma favela, e o empresário Luiz Fernando Gabaglia Penna, mostram como a desigualdade constrói essa difícil realidade. São dois ângulos, mas um único foco. “Da janela do meu quarto vejo a vida e a morte passearem de mãos dadas”, conta Valda, 57 anos, no Rio desde os 12, que acompanhou gerações de bandidos trocarem a velha garrucha por fuzis AR-15 e granadas argentinas. É prisioneira das leis impostas pelos traficantes como Fernando. Dono de uma casa de classe média alta na zona sul, vizinha à favela da Rocinha, o empresário, mesma idade de Valda, também é súdito desse caos. Descrente das autoridades, decidiu impedir novos assaltos à sua residência pedindo proteção ao chefe do tráfico. Vive assim há dez anos. “Nosso acordo de cavalheiros vem sendo mantido, mesmo depois de várias mudanças de administração”, explica.

O livro, que chegará às livrarias por R$ 37, conta com outros relatos fabulosos, como o raro traficante de classe média alta preso (Livio Bruni) e o oficial da PM que herdou o emprego – e o orgulho profissional – do pai, mas não quer ver o filho fardado. Ao fim, o leitor, more no Rio, em São Paulo ou em qualquer aglomerado urbano deste País, será inevitavelmente levado a refletir, como naqueles filmes que resistem mesmo depois que a luz do cinema se acende.