03/12/2003 - 10:00
Oito meses depois de chegar ao Congresso, a reforma da Previdência foi aprovada pelo Senado na quarta-feira 26, sem que os senadores alterassem uma só vírgula do texto recebido da Câmara. Estão lá a taxação dos inativos, o redutor das pensões e o aumento da idade mínima para aposentadoria de servidores públicos, com os quais o Palácio do Planalto espera poupar R$ 47 bilhões nos próximos 20 anos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
estava em audiência no momento da votação, soube do resultado
por um telefonema do chefe da Casa Civil, José Dirceu. Satisfeito,
Lula telefonou ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), agradeceu a forma com que o assunto foi conduzido e passou a comemorar com o presidente do PT, José Genoino. Entusiasmou-se a ponto de se dizer de “alma lavada” por ter feito em 11 meses o que o antecessor tentou por anos a fio.
Apesar da vitória, pela primeira vez desde que tomou posse o presidente se viu obrigado a entrar no varejão político. Antes da sessão em que a reforma foi aprovada, telefonou pessoalmente para pelo menos três senadores, pedindo-lhes o voto. Ao petista gaúcho Paulo Paim, teve que prometer empenho para votar dentro de 60 dias a chamada emenda paralela, em que serão tratados pontos de divergência, como a aposentadoria máxima permitida nos Estados. Paim, constrangido, subiu à tribuna para explicar a situação. Levou uma sonora vaia das galerias apinhadas de servidores. Os aplausos sobraram para a oposição e para a senadora Heloísa Helena (PT-AL), oradora do dia. Ao justificar o voto “não”, Heloísa vestiu-se da verve habitual. Chorou, clamando por coerência. “Vou votar como meu partido votou por seis vezes no passado.” Chamou a cúpula do PT de cínica e acusou o governo de submisso. A expulsão dela do partido está marcada para o próximo dia 14.
Na quinta-feira 27, dia de apreciação dos destaques, o PMDB mostrou as garras ao Planalto. Votou pela aprovação de uma emenda permitindo à iniciativa privada explorar o filão de acidentes de trabalho, hoje nas mãos do INSS. Não há chances de tal medida prosperar. Ela só vingou porque o partido decidiu exibir força. Assim, dá mostras do estrago potencial na reforma tributária, caso o presidente demore a lhe entregar os dois ou três ministérios prometidos.
No modo petista de governar, a entrada do presidente no jogo miúdo
do Parlamento é nova sob todos os aspectos. Até então, as barganhas estavam concentradas no quarto andar do Planalto, numa salinha
do corredor central, onde despacha o ex-deputado Marcelo Barbieri (PMDB-SP). Subchefe de Assuntos Parlamentares, ele foi chamado
para o governo em março. Ficou tão surpreso com o convite feito
por José Dirceu, que pediu ao ministro para tratar do assunto com o
ex-governador Orestes Quércia, de quem é correligionário. Quércia almoçou com Lula e emplacou o afilhado no governo antes de qualquer outro cacique do PMDB.
Nomeado em abril, Barbieri ganhou a missão de receber os pedidos de verbas dos parlamentares e levá-los a Dirceu. A tarefa revelou-se hercúlea, já que dois meses antes a equipe econômica anunciara o aprofundamento do arrocho fiscal e bloqueara R$ 14 bilhões do orçamento deste ano. Sob pressão dos prefeitos, deputados e senadores começaram a se amontoar em frente à subchefia de Assuntos Parlamentares. Certa vez, a fila espalhou-se pela Casa Civil, e a sala 127 ganhou o apelido de Porta da Esperança. “Teve um dia que participei de 36 reuniões e recebi 60 telefonemas”, conta Barbieri. Em vez de dinheiro, liberava doses generosas de atenção, café, sorrisos, água, balinhas, promessas e chocolate. Como havia R$ 12 bilhões de restos a pagar do exercício de 2002, muitas das pendências diziam respeito a obras em cidades ligadas a deputados do PSDB e do PFL, aliados de FHC. A ordem de pagamento saiu só para obras já iniciadas. “Pagamos a conta-gotas”, lembra Barbieri.
Deu certo. O governo garimpou votos oposicionistas executando o orçamento herdado de FHC. A reforma da Previdência, duríssima do ponto de vista político por reduzir vencimentos futuros do lobby mais organizado do País, o dos servidores, passou na Câmara com 30 votos do PFL, 25 do PSDB e 35 do PMDB – sem eles, a emenda seria rejeitada. No Senado, com vários ex-governadores, ex-ministros e até um ex-presidente nas bancadas, a liberação miúda de verbas orçamentárias não faria nem cócegas, daí a presença de Lula no front.
Pelo lado econômico, a reforma é parte fundamental dos planos do governo. Ela está prevista no roteiro iniciado com a nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central ainda na fase de transição, em dezembro de 2002. Banqueiro internacional aposentado e deputado federal eleito pelo PSDB, num primeiro momento Meirelles serviu
como um totem. Sua figura sinalizou novas crenças, a partir das
quais o governo elevou a meta de inflação, subiu os juros, arrochou
ainda mais o próprio caixa e fechou acordo com o FMI. Por enquanto,
tal política atingiu o objetivo de debelar o medo dos investidores estrangeiros, motivo pelo qual a taxa de câmbio caiu de R$ 3,5 para
R$ 2,9 por dólar, o risco-país de 1,4 mil para 500 pontos básicos, e a inflação acima de 2% em janeiro murchou para 0,2% em outubro. No Palácio do Planalto, fala-se abertamente de uma taxa de juros entre 13% e 14% ao ano em março de 2004. O fluxo de dólares, que a essa altura do ano passado mostrava US$ 11 bilhões fugindo do País, hoje reluz com US$ 2 bilhões de entradas líquidas.
São esses os números por trás do novo discurso do ministro da
Fazenda, Antônio Palocci, para quem o País iniciou o chamado crescimento sustentável. “Já podemos baixar os juros sem que o
dólar dispare e leve junto a inflação”, aposta o ministro. Ao poupar o Tesouro Nacional e teoricamente diminuir a necessidade de financiamento público nos próximos anos, a reforma da Previdência funciona como argamassa nos tijolos da política econômica. Com ela, o governo não precisará pagar juros tão altos para atrair capitais nacionais e estrangeiros e abrirá espaço para o crescimento. “Criamos uma chance única em muitos anos”, atacou Palocci, despreocupado com as estatísticas divulgadas pelo IBGE, de que o PIB cresceu pífio 0,4% no terceiro trimestre e de que a sombra do desemprego permanece encobrindo 12,9% da população economicamente ativa mesmo após as últimas quedas dos juros. Para ele, de acordo com a conjuntura, “só é pessimista quem quer”.
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