O verão carioca, pródigo em personagens folclóricos, já tem o destaque de 2003: o fiscal de rendas Rodrigo Silveirinha Corrêa. A figura de almofadinha com cabelo engomado e colarinho impecável passou a circular em jornais, emissoras de tevê e charges desde que ISTOÉ desvendou o esquema de extorsão que rendeu a quatro fiscais estaduais e outros quatro auditores do Fisco federal a bolada de
US$ 34.488.000 depositados no Union Bancaire Privée (UBP), na Suíça. O novo conhecido do público, no entanto, não era tão desconhecido das autoridades do governo do Rio de Janeiro. O ex-governador Anthony Garotinho – que negou sua proximidade com Silveirinha e na segunda-feira 13 o chamou de bandido e de “sub do sub” – acabou beneficiando o fiscal ao propor lei complementar, em fevereiro de 1999, que modificava a Lei 69/90. O projeto do Executivo, aprovado em
regime de urgência pela Assembléia Legislativa do Rio, tinha como justificativa “permitir o melhor aproveitamento dos integrantes da
carreira de fiscal de rendas” e ressaltava ainda que a lei como estava anteriormente “impossibilitava a desejável concretização dos princípios
da impessoalidade e da isonomia”. A legislação impedia um fiscal de segunda categoria, como Silveirinha, de assumir a Subsecretaria de Administração Tributária. Graças à alteração, ele se tornou o poderoso chefão do recolhimento de impostos estaduais, auxiliado por Carlos Eduardo Pereira Ramos, que tem US$ 18,1 milhões na Suíça, Rômulo Gonçalves, que juntou US$ 2,1 milhões, e Lucio Manoel Picanço,
dono de um pé-de-meia de mais de US$ 1 milhão.

Silveirinha na subsecretaria injetou combustível para que o esquema chegasse ao auge. Mas documentos mostram que o dinheiro sujo já alimentava algumas das contas ilegais em 1989. Na época, Picanço, um pedetista histórico, já formava a dobradinha com Carlos Antônio Sasse na administração do prefeito de Niterói Jorge Roberto Silveira – Sasse como secretário de Fazenda e Picanço como seu chefe de gabinete. Os documentos encaminhados pelas autoridades suíças mostram que as datas de vários depósitos coincidem com a atuação da dupla nas duas administrações de Jorge Roberto, de 1989 a 1992 e de 1997 a 2000. O volume das transferências dá um salto em 1997, exatamente quando Picanço se mostrava afinadíssimo com José Roberto Vinagre Mocarzel, então secretário de Obras de Niterói. Mocarzel, que concorreu como vice na chapa de Jorge Roberto ao governo do Rio de Janeiro no ano passado, é uma das figuras mais polêmicas que já passaram pela prefeitura. Envolvido em escândalos, começou a ser investigado pela Procuradoria de Justiça do Estado em 2000 por enriquecimento ilícito. Ganhando um salário de cerca de R$ 4 mil, Mocarzel conseguiu reunir um patrimônio de R$ 2 milhões.

Passado – A ligação entre Mocarzel e Picanço vem dessa época e está documentada. Também em 1997, os dois compraram juntos uma loja no bairro de Itaipu. Acredita-se que o esquema montado no governo do Rio de Janeiro tenha se originado na máquina administrativa de Niterói. Mesmo após o caso ter vindo à tona, o grupo continua exercendo sua influência na Secretaria Estadual de Fazenda: Jorge Andrade, que foi amigo, ex-tesoureiro e financiador da suntuosa campanha de Picanço a deputado federal pelo PDT, foi nomeado pela governadora Rosinha Garotinho para o cobiçado cargo de superintendente de fiscalização do Fisco estadual. Ele terá sob sua responsabilidade, entre outras repartições, a nova inspetoria dedicada à investigação de empresas de grande porte, apontada como principal instrumento de extorsão do grupo comandado por Silverinha. Segundo o TRE, Andrade colaborou com R$ 10 mil para a campanha do amigo.

 

O Ministério Público tem mais chance de desvendar toda essa trama agora que conseguiu a quebra dos sigilos bancário e fiscal dos oito envolvidos. Negado em dezembro, o pedido foi finalmente atendido pelo juiz federal Lafredo Lisboa na última terça-feira 14, depois da publicação do caso por ISTOÉ. Antes de ouvir os envolvidos, a Polícia Federal do Rio de Janeiro vai perseguir outras pistas. Até o momento, a única peça documental anexada aos autos é o relatório do Ministério Público da Suíça. O dossiê informa que os oito envolvidos, ainda não comunicados oficialmente do inquérito, alegam ter conseguido os recursos em trabalhos de consultoria. Com exceção de um dos auditores federais, os demais negaram ter as contas. “Nem sabia que havia conta em meu nome nem autorizei ninguém a abrir uma”, declarou Silveirinha a ISTOÉ. O governo do Rio também não foi comunicado oficialmente das acusações contra os funcionários do Fisco estadual. Em entrevista à CBN e ao programa Passando a Limpo, da Rede Record, a governadora Rosinha Garotinho disse que resolveu demitir Silverinha ao tomar conhecimento do teor da reportagem da revista. “Achei as denúncias de ISTOÉ contundentes”, disse.

No Banco Central, funcionários checam a informação de que os oito envolvidos conseguiram movimentar seu dinheiro nas últimas semanas. É certo que, dos US$ 3,4 milhões somados pelos quatro auditores federais no fim de outubro, pelo menos US$ 400 mil foram sacados. A Receita, que vasculha o patrimônio dos envolvidos, já concluiu que cinco deles omitiram bens em suas declarações de renda. A trilha do dinheiro também está sendo rastreada pelo MP. Um contrato registrado em cartório do Rio mostra que Herry Rosemberg, representante do Discount Bank no Brasil – banco comprado pelo UBP que originalmente acolheu as contas dos fiscais – também tinha conexões em um outro paraíso fiscal. Rosemberg e sua consultoria, a Coplac, foram contratados para representar o Scontinvest Equity Fund no Brasil, um fundo de capital estrangeiro com sede no condado de Luxemburgo. Especialistas do mercado financeiro que analisaram a documentação acreditam que esse fundo pode ter sido utilizado para trazer dinheiro dos fiscais da Suíça de volta ao País ou remeter recursos desviados para outros paraísos. A Interpol já investiga a informação dada por um empresário brasileiro que relata ter visto Silveirinha passeando pelas ruas de Luxemburgo no ano passado. Esses fatos levantam uma nova suspeita. “Não duvido que apareçam outras contas explosivas. Em nome destes e de novos envolvidos”, diz o deputado estadual Carlos Minc (PT), que vem recebendo denúncias de fiscais e empresários extorquidos. Minc é autor do requerimento que desencadeou a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que vai apurar o esquema. A CPI deverá ser instalada no início de fevereiro.

Silveirinha já é assunto conhecido na Assembléia do Rio. Em junho de 2000, o então deputado Eider Dantas (PFL) denunciou um caso suspeitíssimo envolvendo Silveirinha e seu grupo. Um rosário de irregularidades foi identificado na fiscalização dos supermercados do Rio, entre elas um estranho acerto de tributos pendentes que permitiu ao Carrefour comprar três pequenas cadeias concorrentes sem nenhum passivo tributário. O episódio gerou um requerimento de informação que citava Silveirinha nominalmente. O imbróglio acabou abafado, assim como a denúncia de tentativa de extorsão à Light, que teria sido praticada por fiscais do grupo. Quem conhece a estrutura montada pelos fiscais aposta que histórias muito mais escabrosas surgirão das entranhas da Inspetoria de Grande Porte. Se não for pela ação dos deputados fluminenses – que no passado preferiram se omitir – certamente será pelo MP.

Uma semana após estourar o escândalo, a governadora do Rio
ainda sofria com uma espécie de maldição de Silveirinha: indicado
por Rosinha para chefiar a Inspetoria de Contribuintes de Grande
Porte, o fiscal Francisco Roberto da Cunha Gomes é responsável
por uma empresa falida que deve mais de R$ 100 mil de FGTS
e é sócio de outra empresa, o que contraria o Estatuto do
Funcionalismo Público. Na sexta-feira 17, três dias depois de
nomeá-lo, a governadora foi obrigada a destituí-lo do cargo.