Desativada com o gesto simbólico da implosão de três de seus sete pavilhões, a Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, entrou para a história como uma das mais fracassadas experiências prisionais do País. Suas dependências foram projetadas para abrigar cerca de 3.250 presos. Mas em 46 anos de existência chegou a receber nove mil homens, massa carcerária que ganhou as páginas de jornais e revistas do mundo inteiro no fatídico massacre dos 111, em 1992. Sobre a Casa de Detenção já se escreveram livros emocionantes, como o do oncologista Drauzio Varella, matriz do filme Carandiru, de Hector Babenco. Agora, um ano depois de sua desativação, outro volume se junta à literatura sobre aquele que foi o maior presídio da América Latina. É Aqui dentro – páginas de uma memória: Carandiru (Fundação Memorial da América Latina/Imprensa Oficial, 260 págs., 280 fotos, R$ 60), que tem lançamento em São
Paulo na segunda-feira 1º e no Rio de Janeiro, uma semana depois. Coordenado pela fotógrafa e documentarista Maureen Bisilliat e baseado em documentação produzida pela atriz Sophia Bisilliat, pelo jornalista André Caramante e pelos fotógrafos João Wainer e Pedro Lobo, Aqui dentro é daqueles livros que se lê de uma vez e, virada a última página, deixa a cabeça do leitor povoada de imagens aterradoras, provocadas pela soma dos relatos e das fotos.

Lugar maldito, imantado de vivências trágicas, com seus altos muros amarelos, a sinistra construção provocava calafrios em qualquer um que passasse pela avenida Cruzeiro do Sul, em Santana, zona norte de São Paulo. Como se dirigisse um filme, Maureen Bisiliat escolheu abrir o livro com arrepiantes fotos das celas iluminadas, vistas do pátio. Páginas adiante, basta o contato com os primeiros depoimentos para o leitor se sentir lá dentro. Não são relatos para alimentar o voyeurismo da classe média diante do mundo do crime. Muito menos entrevistas guiadas por um beabá sociológico ou psiquiátrico para desvendar mentes de marginais. Cada depoimento parece se construir a partir dos próprios entrevistados. O resultado é o resgate de uma identidade mínima de pessoas antes identificadas apenas por um prontuário. “A tônica está no ouvir, no poder da palavra e na necessidade de narrar”, conta Maureen, que prefere chamar os presos de narradores, e não de entrevistados. “Não se trata de um livro maniqueísta, que enfoca só um lado. Ouvimos também funcionários e diretores do presídio.”

Cotidiano – Entre os 50 depoimentos, colhidos de outubro de 2001 a agosto de 2002, num total de mais de 70 horas de gravação em vídeo e fita cassete, figuram aqueles improváveis, que revelam detalhes desconhecidos do cotidiano do Carandiru. Encarregado da parte elétrica, Favela conta do perigo constante da sobrecarga de energia numa cidade carcerária infestada das chamadas gambiarras. Alemão, responsável pela limpeza dos bueiros, explica a importância de sua atividade e conta como conseguia localizar, por exemplo, uma aliança de casamento no complexo sistema de esgotos a partir da cela onde a jóia havia caído no ralo. Outras narrativas se desenvolvem à deriva, recuperando a trajetória inteira de uma vida errada, caso da “narração” de José Carlos, 46 anos, duas filhas e dois netos, preso por tentativa de assalto a banco. Em cinco páginas em ritmo de pesadelo, ele fala da decisão de pegar numa arma depois de ser office boy, metalúrgico, feirante e carreteiro. Com a morte da mãe – que era “mãe e pai” ao mesmo tempo –, foi obrigado a morar numa favela, onde se aproximou do “mais bravo da boca”. Já na cadeia, numa permissão de visita à família, José Carlos encontra sua filha envolvida no mundo do crime, fechando, assim, um ciclo perverso do qual tenta se desvencilhar. “Cheguei ao extremo de pegar uma arma e colocar na cabeça dela. Foi o pior Natal da minha vida”, conta.

Segundo Sophia, filha de Maureen, o critério para a escolha dos entrevistados se deu pela importância do preso dentro da comunidade carcerária ou pela desenvoltura de alguns deles ao falar de si próprios. “Mas nunca perguntávamos o artigo (crime praticado, na gíria interna)”, explica Sophia, que nos nove meses gastos na documentação chegou a sair de lá às três da manhã, ato impensável na dinâmica de qualquer presídio. Criadora do projeto Talentos aprisonados – desenvolvido no Carandiru entre 1998 e 2001 e que revelou artistas, como o grupo de rap 509 E –, Sophia atuou em ações sociais no local desde 1986, quando incentivou a atividade teatral entre os detentos. Foi quando Maureen começou a documentar tudo em vídeo. “No começo só ia no Pavilhão 6, que era onde aconteciam missas e festas. Depois comecei a circular por outros pavilhões, sempre em companhia de algum funcionário. Só então subi os andares, que é onde ficavam as celas”, relata Sophia.

Especialmente reveladoras são as fotos das habitações, algumas impressionantes em relação à limpeza. Sophia, que poderia editar um dicionário das gírias internas do presídio, explica a função do termo “quieto”, pequena cortina que cobria a cama beliche e permitia ao preso um raro momento de solidão. “Quando alguém está com a cortina fechada, ninguém mexe com ele. Naquele momento, ele sai da cadeia, está no chamado castelo”, explica. No linguajar dos presos, castelo é se tornar ausente através da imaginação. Outra forma de se evadir era através das cartas, momento de religação com o mundo de fora. O prisoneiro Ivan Ribeiro chegou a receber 50 correspondências por dia, todas de sua mulher. Em sete anos de cadeia, colecionou cinco mil cartas que pretende reler quando voltar para casa. “Para quem está preso, uma carta é uma visita”, diz. Numa das fotos um homem lê agachado um pedaço de papel no canto do muro, longe do burburinho da população carcerária. Poderia ser a imagem-síntese do olhar humanista de Aqui dentro, livro que não traz respostas, mas um punhado de indagações.