entro do seu rico universo de fantasias, memórias, invenções e personagens sensíveis ou divertidamente surreais, o cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) criou uma obra que hoje se coloca entre as mais importantes do cinema internacional. A estrada (La strada, Itália, 1954), em cartaz em São Paulo com cópia restaurada, é um ótimo exemplo da sua genialidade. Mesmo depois de voltar às telas quase 50 anos depois de produzido, o filme não se mostra datado em nenhum momento. Ao contrário, a dramática história da jovem Gelsomina, um pouco abilolada, mas de coração tão imenso quanto sua inocência, que foi vendida pela mãe ao bruto artista mambembe Zampanò, se mantém intacta na essência de escancarar a incomunicabilidade entre as pessoas.

Gelsomina – uma interpretação histórica de Giulietta Masina (1920-1994), mulher de Fellini – é um ser totalmente à margem da vida. Quase todos os personagens, aliás, vivem na mesma situação. Criada numa família pobre, sem a mínima possibilidade de ampliar seu mundinho além das areias da localidade marítima onde nasceu, ela deposita no artista todas as chances de desabrochamento. Acontece que Zampanò, papel de peso de Anthony Quinn, é um brutamontes egoísta e praticamente a escraviza como sua assistente. O único que, na confusão de desencontros, se mostra um ser mais feliz é justamente o Louco (Richard Basehart), representante da mente em liberdade na mitologia felliniana. Nessa soturna conjunção de solidão e tristeza, a chapliniana Gelsomina ainda exala pureza na sua tentativa infrutífera de entender e se adaptar ao mundo. Um mundo que, na verdade, é cheio de desesperança, melancolia e beleza difícil de alcançar, intensa demais para compreender.