Uma quantidade notável de livros com correspondências de brasileiros de alta estirpe tem desabado nas livrarias, revelando os meandros intelectuais e sentimentais de gente como a escritora Clarice Lispector, o arquiteto Oscar Niemeyer, os comunistas Luiz Carlos Prestes e Olga Benário ou o poeta Vinicius de Moraes, para citar apenas os mais recentes lançamentos. Se estes trabalhos já valiam para lamentar profundamente o quase fim do hábito epistolar, está sendo lançado um livro que não deixa filete de dúvida sobre a maravilha do ato de escrever à mão aos amigos. Carlos & Mário (Bem-Te-Vi, 618 págs., R$ 190) traz cartas trocadas nas décadas de 20, 30 e 40 entre o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e o escritor e poeta paulistano Mário de Andrade (1893-1945), cuja correspondência genérica já havia sido publicada. Com organização e pesquisa iconográfica de Lélia Coelho Frota
mais prefácio e notas de Silviano Santiago, Carlos & Mário é uma
obra indispensável e melancólica. Primeiro, pela riqueza de detalhes
e revelações sobre a vida e personalidade dos dois personagens,
parte amparada em 320 imagens. Segundo, pela inescapável
comparação entre a ebulição cultural daqueles tempos e o marasmo atual, sem bons debates e debatedores do nível de Pedro Nava,
Tarsila do Amaral ou Martins de Almeida.

Chega a ser sublime a forma como Drummond e Mário contracenam conflitos, críticas, elogios, desabafos, abrindo o coração sem reservas. A troca de missivas começa em 1924 com Drummond, em texto absolutamente fiel à sua imagem de mineiro tímido. Ele diz a Mário: “Procure-me nas suas memórias de Belo Horizonte: um rapaz magro que teve consigo no Grande Hotel e que muito o estima.” Mas uma das grandes surpresas do livro é a imagem pública de Carlos Drummond de Andrade que bate de frente com uma personalidade por vezes arrogante e constantemente impiedosa, inclusive consigo mesmo. “Acho o Brasil um país infecto. Não tem atmosfera mental, não tem literatura, não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis ou velhacos. Detesto o Brasil como a um ambiente nocivo à expansão do meu espírito. Sou
hereditariamente europeu, ou antes, francês. Duvido se haverá
vantagem em sacrificar-se espiritualmente a uma cambada de bestas como é a quase totalidade de nossos irmãos brasileiros”, metralha
ele, na flor dos seus 20 e poucos anos.

Língua solta – A resposta de Mário de Andrade é a de um mestre em movimento, calmo e objetivo. “Antes de mais nada: você é muito inteligente, puxa! Você veio fumando, de chapéu na cabeça, bateu-me familiarmente nas costas e disse: Te incomodo? Pois camarada velho, sente-se aí e vamos conversar.” E solta a língua. Mário escolhe para Cristo o escritor francês Anatole France, que muito influenciou o início da vida intelectual de Drummond. Sobre o “Brasil infecto”, disse: “Não me escandalizei mas achei lastimável. Tudo isso são caraminholas metidas em sua cabeça pelas letras do senhor France et caterva. O mal que esse homem fez a você foi torná-lo cheio de literatices, de inteligentices, abstrações em letra de forma, sabedoria de papel, filosofia escrita.” No fim, aconselha: “Você faça um esforcinho para abrasileirar-se. Depois acostuma, não repara mais nisso e é brasileiro sem querer.”

Tal transformação aconteceria, mas não num curto espaço de tempo. Drummond continuaria a falar mal da cultura nativa, como na ocasião em que assustou Mário ao dizer que não suportava Machado de Assis. Assim o poeta mineiro descreveu seu sentimento ao ler Memorial de Aires, de Machado: “Muito ralo, uma espécie de bocejo e de arroto choco em cada página.” Outros ícones da arte brasileira também não escaparam. “Detesto O guarani, romance e ópera”, vaticinou. Obviamente, o pai de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter e um dos próceres do modernismo não poderia ficar impávido diante destas declarações. No entanto, entre pancadas, conselhos e demonstrações de afeto, Drummond acaba confessando como Mário fez sua cabeça. “Eu era um sujeito muito desgraçado, mas agora reconheço que tudo foi ótimo e valeu a pena. Em grande parte, por causa de você”, escreveu em 1944.

Macunaíma aparece em alguns trechos das cartas. Drummond saúda: “Viva Macunaíma! Não tem caráter absolutamente nenhum, mas por isso mesmo é característico como quê. É o herói nacional quase íntegro.” O pai da personagem desautoriza a interpretação: “Macunaíma não pode ser símbolo do brasileiro simplesmente porque símbolo, empregado assim, implica na totalidade psicológica. Tirei dele, propositadamente, o lado bom do brasileiro. Como símbolo do brasileiro, ele é pessimista; ora é a maior das bobagens. Toda a minha vida repousa numa concepção otimista do brasileiro.” É verdade. Ao ler a obra de Mário de Andrade, nota-se como é reluzente sua alegria e opção em viver plenamente seu país e sempre vencer os obstáculos.

Dramas – Cheio de doenças como úlcera, sinusite, dores de cabeça, problemas no fígado, nevralgias e neurastenia, ele nunca se deixava abater. Ao contrário do amigo, que se reconhecia com vocação para
o desânimo, inércia e dramas paralelos. “Tenho sofrido por minha culpa
e de mais ninguém. Já estou cansado dessa vida estúpida e sem graça, que só não é a mesma todos os dias porque é pior”, diz o poeta mineiro. Mário acerta na alma do amigo ao localizar o problema. “Você jamais esquecerá que no meio do caminho tinha uma pedra”, em alusão a um
dos famosos poemas de Drummond, No meio do caminho. Em outra ocasião, Mário o aconselha a “abandonar a solução a que Macunaíma chegou depois de muito gesto heróico e façanha: a de viver o brilho
inútil das estrelas”. Mário morreu aos 51 anos, de infarto, dois dias
depois de mandar a última carta para Drummond.