03/12/2003 - 10:00
Desde que a indústria do bingo nasceu no País, em 1993, através da Lei Zico, o jogo, legalizado para ajudar o esporte amador, sempre dividiu opiniões. Há quem seja severamente contra, como o governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), e quem torça francamente a favor, como o deputado Delfim Netto (PP). Mas uma opinião é consenso entre todos, seja de que lado venham os argumentos: do jeito que está não pode ficar. A atividade é legal e movimenta centenas de milhões por ano, além de empregar cerca de 120 mil pessoas, mas está ao deus-dará, como o diabo gosta. Sem regulamentação específica desde dezembro de 2001 – quando uma lei do senador
Maguito Vilela (PMDB-GO) revogou a legislação existente –, as casas
de bingo funcionam longe dos olhos da Receita Federal, do Conselho
de Controle de Atividade Financeira (Coaf) e de outros órgãos que,
em tese, deveriam fiscalizar o setor, acusado de ser propício à lavagem de dinheiro e à sonegação fiscal. O resultado é que os bingos já foram alvo de uma CPI na Câmara dos Deputados, e volta e meia o Ministério Público denuncia estabelecimentos, insinuando até seu envolvimento
nas máfias italiana e espanhola. Mas quem tem de fato trabalhado
pela regulamentação são os próprios donos das casas, reunidos na Associação Brasileira de Bingos (Abrabin), que pedem ao governo,
quase encarecidamente, que encaminhe um projeto de lei ao
Congresso regulamentando o jogo e impondo penas severas aos empresários que se envolvem em crimes financeiros.
Trabalhando à custa de liminares concedidas pela Justiça, eles
reclamam da falta de atenção por parte do governo para com um setor que, é fato, emprega muita gente e, segundo a Abrabin, poderia repassar cerca de R$ 250 milhões por ano aos cofres públicos, além dos impostos. Em casas como a Imperador, a maior da América Latina, em São Paulo, o bingo assinou a carteira de 280 pessoas, beneficiadas com plano de saúde e odontológico e refeições custeadas. Nas mesas de aposta e nas 300 máquinas de videobingo, o jogo diverte diariamente 1.200 pessoas, que passam em média cerca de três horas num cenário superiluminado e colorido de 4,2 mil metros quadrados. A clientela, de classe média alta, é generosa. “Recebo de R$ 50 a R$ 100 de caixinha por dia, é uma beleza”, diz Vítor Rosa dos Santos, 29 anos, que trabalha há cinco meses no Imperador. Para ele, o bingo tem suas vantagens: “Emprega gente com ou sem faculdade e remunera bem.” A também atendente Michele Pestana, 20 anos, é só elogios: “Quero fazer carreira aqui.” Uma das acionistas da casa, Bilú Villela, 48 anos, bate na tecla do emprego para defender a regulamentação. “O Brasil está precisando de emprego, e não de jogo político”, argumenta.
Mas a política cria lá suas polêmicas. No Senado, tramita um projeto de lei (PL) de autoria do então senador Requião sugerindo a proibição total dos bingos no País. “O bingo é ruim, é lavagem de dinheiro do narcotráfico, do crime organizado. O bingo no Brasil é o bingo da máfia espanhola, italiana”, já declarou o governador. Já o deputado Gilmar Machado (PT-MG) é autor de outro PL, que sugere a regulamentação e coloca o jogo como uma das formas de financiamento do esporte nacional. Gilmar saiu na frente. “Mostrei minhas idéias ao grupo de trabalho e tive boa recepção”, afirma. O grupo de trabalho ao qual o deputado se refere é interministerial, chefiado pela Casa Civil, e foi criado pelo presidente Lula no segundo semestre deste ano. O grupo, formado por representantes dos ministérios da Fazenda, da Justiça e do Esporte, já realizou duas audiências públicas, com a participação de donos de bingos, técnicos das loterias estaduais, da Caixa Econômica Federal e de associações de bingos. Olavo Sales, presidente da Abrabin, esteve presente numa delas para expor seus argumentos a favor da regulamentação. “A legislação daria credibilidade para a gente e o bingo passaria a ser frequentado por pessoas que hoje não costumam fazê-lo. O número de empregos pode pular para 300 mil”, diz. Ele acredita que o governo está empenhado no assunto, até porque também está de olho no dinheiro que pode abocanhar para investir nos programas sociais. Olavo nem sequer comenta as acusações de lavagem e sonegação que envolvem o setor. “Isso é um equívoco e nem dá para opinar”, afirma.
No entanto, já que a atividade lida com movimentações milionárias, o governo já pensa no melhor modo de aplicar a fiscalização. Deomar de Moraes, ex-coordenador de Inteligência da Receita Federal, diz que é preciso criar uma equipe governamental para se dedicar exclusivamente a isso. “Há a necessidade de um grupo específico para fiscalizar o jogo, talvez remanejando parte do quadro da Receita. Este setor deve ser tratado como econômico e acho que o Estado tem que se fazer presente neste tipo de atividade”, explica. O projeto do governo deverá ser enviado ao Congresso na segunda quinzena de dezembro. Na sexta-feira 12, o grupo de trabalho entregará ao ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, o relatório final, resultado de 45 dias de atividades e que servirá para embasar o projeto de lei. Os técnicos coletaram informações e sugestões sobre o funcionamento das casas de jogo no País. Nestas duas últimas semanas que restam no prazo dado por Dirceu, eles vão se reunir com o Ministério Público para debater os possíveis empecilhos legais à regulamentação.
Ainda não há um texto básico do futuro PL, mas já se sabe que a legislação será rigorosa. Na parte de controle, o uso de sistemas eletrônicos – desenvolvidos e administrados pela Caixa Econômica Federal (CEF) – é considerado por parlamentares governistas a maneira mais eficiente de evitar a sonegação. Eles dizem que, além de permitir ao governo um controle completo dos volumes de dinheiro movimentados, os sistemas online também garantiriam os direitos dos espectadores, permitindo, por exemplo, a definição prévia dos porcentuais de apostas vencedoras. Os técnicos do governo indicam que, se a decisão política for pela regulamentação, naturalmente haverá a opção pelas formas de controle mais efetivas possíveis. E a CEF, naturalmente, deverá ser a encarregada da tarefa. Deomar, da Receita, aposta na eficiência da informática para garantir o controle. “O computador permite tudo, registra tudo e pode tornar os dados invioláveis”, diz. Para ele, é fundamental que o PL do governo tente garantir também que o apostador não seja ludibriado, fiscalizando, principalmente, os videobingos.
A aposentada Yara Vieira Ribeiro é uma destas apostadoras típicas – aos 60 anos, frequenta o bingo duas vezes por semana – e não acredita que seja enganada pela máquina. Aliás, já levou R$ 10 mil numa rodada. “A sensação de ganhar é muito boa, uma delícia”, conta ela, que quando vai jogar passa, no mínimo, quatro horas na mesa. O jogo vicia, dona Yara? “Quem tem juízo tem no bingo e em qualquer lugar. Já quem não tem, e tende ao vício, pode se viciar em qualquer coisa. É muito relativo. Eu tenho meus limites. Lá em casa eles não gostam de jogo, mas para mim é uma distração, uma verdadeira terapia”, garante. O estímulo à compulsão é um dos argumentos usados por quem é contra o bingo. Segundo o presidente da Associação dos Bingos do Rio de Janeiro, José Renato Granado, “de 2% a 3% dos apostadores têm uma relação doentia com o jogo”. Juntamente com os sócios do Bingo Arpoador, no Rio de Janeiro, ele está finalizando uma parceria com as entidades que tratam de jogadores compulsivos. “Não podemos virar a cara para este tipo de problema”, admite.
Das 39 casas em funcionamento no Rio, o Bingo Arpoador é o que responde pelo maior volume de arrecadação. Seus sócios preferem não revelar o faturamento da casa, mas, da fundação, em 1994, até hoje, já foram repassados R$ 15 milhões para o Estado investir nas áreas esportiva e social. Mensalmente, os bingos cariocas transferem R$ 3 milhões para o governo fluminense, por intermédio da Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj). Do total, 70% são aplicados em obras sociais, através de uma organização não-governamental, a ONG Vida Obra. O repasse de recursos para o social é também uma das idéias defendidas pela Abrabin. Segundo a entidade, 125 instituições, que vão de creches a escolas para crianças com síndrome de Down, contam com o apoio dos bingos. Mas a entidade propõe a criação de um fundo, gerenciado pelo próprio governo, que disponibilize uma parte da receita das casas para a cultura, o esporte e programas contra a fome. O líder do PMDB no Senado, senador Renan Calheiros (AL), concorda com a idéia: “Temos que considerar isso. Além de a operação dos bingos precisar ser transparente, o governo deve recolher os impostos e taxas a que tem direito e usar os recursos em programas sociais – como o Fome Zero –, esportivos e culturais”, diz.
Para melhorar a imagem do jogo, campanhas do agasalho são promovidas anualmente nas casas, na tentativa de angariar doações de gente fina como os frequentadores do Bingo Arpoador. Nos últimos nove anos, o local é cenário de um entra-e-sai incessante de senhoras elegantemente vestidas e com cabelos impecavelmente arrumados, que passam a tarde arriscando a sorte na roda da fortuna. Sozinhas ou acompanhadas, elas representam 70% do público do mais conhecido bingo da cidade. São mulheres de mais de 45 anos, das classes A e B, sobretudo aposentadas. Cerca de 400 pessoas frequentam o local diariamente, mas já houve tempo em que esse número era mais do que o dobro, 1,1 mil pessoas por dia. A saída para ampliar o público, segundo a Abrabin, seria a transformação das grandes casas de bingo em centros de lazer, que abrigariam também atrações culturais, como shows e orquestras. Dentro do Imperador, por exemplo, há um restaurante internacional. Alguns clientes frequentam a casa apenas para comer. “Geralmente venho nos finais de semana com um amigo, o Arthur. A gente gosta muito da cozinha daqui. Algumas vezes venho só para comer e conversar. Nem jogo”, conta o cirurgião plástico Carlos Alberto Cruz Mello, 33 anos. Este é um dos motivos pelos quais o consultor da Trevisan e Associados, Toshe Ushirobira, é a favor da regulamentação. “Transformar em casas de lazer certamente faria crescer o empreendimento, gerando, inclusive, mais empregos”, aponta. Mas para ele a questão econômica é a mais importante. “Já existe um montante investido no setor”, observa.
O mesmo argumento é utilizado pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR). Ele considera que o fato de os bingos existirem espalhados por todo o País, embora sem legislação, já criou uma situação de fato: “O que é preciso fazer é regulamentar. O que não pode é continuarem a existir dentro de um processo nebuloso que alimenta a corrupção. O governo deixa de arrecadar impostos, e a ausência de regras não protege o cidadão que aposta”, afirma Jucá. “Não pode é continuar como está. O projeto do governo regulamentando a questão deverá levar em conta todos esses aspectos”, espera o senador. Mas o martelo não será batido tão rapidamente. O governo quer que seu projeto seja discutido pela Câmara e pelo Senado, de modo que o modelo final reflita a posição da sociedade. Isso significa que a tramitação só acontecerá mesmo no ano que vem. E uma coisa é certa: o modelo não terá muita relação com o adotado antes, que permitiu, durante alguns anos, a operação normal dos bingos. Já está definido que, como uma nova loteria, o novo bingo, se aprovado, terá
que destinar uma parte dos recursos faturados para a Seguridade
Social (Previdência, Saúde e Assistência Social), tendo ainda outras destinações – esporte, Fome Zero, etc. – que venham a ser designadas.
O projeto definirá o montante a ser repassado para cada uma das áreas. Além disso, seria definido um porcentual de repasse específico para as máquinas de videobingo, responsáveis pela maior parte do dinheiro movimentado nas casas. A própria Abrabin sugere que cerca de R$ 100 mensais, por aparelho, sejam repassados ao governo.
Na proposta do deputado Gilmar Machado, as máquinas só poderiam corresponder a um terço do número de cadeiras do salão de apostas – onde as cartelas são manuseadas. E não poderiam ser instaladas máquinas eletrônicas fora dos prédios dos bingos. “Os bingos usam o argumento de que geram empregos. Então vamos dar condições para que mantenham os empregos atuais e criem outros. Por isso limito o número de máquinas. Quem quiser mais que amplie as instalações, coloque mais mesas, com atendentes, garçons, etc.”, explica. Esses aparelhos já foram alvo da fúria do governo Fernando Henrique Cardoso, que chegou a proibi-los – a legislação não permitia que estivessem dentro das salas. Na ocasião, o advogado constitucionalista Ives Gandra Martins emitiu um parecer sobre a querela jurídica: “Disse que as máquinas não poderiam ficar dentro das salas, mas a legislação não dizia nada sobre as ante-salas. Eu disse que, desde que seja na ante-sala, tudo bem as máquinas funcionarem”, conta.
A polêmica vai se instaurar mesmo é no Congresso, depois que o governo encaminhar seu projeto de lei para o setor. Videobingo, cartelas, impostos, repasses. É possível que tudo vire motivo para discussão. Declarações como a do deputado Delfim Netto, por exemplo, podem causar furor: “Sou a favor da abertura do jogo, dos cassinos. Então não há nenhuma razão para ser contra os bingos.” Resta esperar pela conclusão dos estudos do governo e, depois, pelo projeto de lei. Delfim conclui: “A situação atual, com os bingos funcionando sem regras, é que não pode continuar.”
|
|