O primeiro programa brasileiro de treinamento de cães guias chegou à maturidade em três anos e já revoluciona a vida dos deficientes visuais. Inédito no País, ele já deu a dez deficientes de Brasília a possibilidade de ver o mundo pelos olhos do melhor amigo do homem. “Ele é um membro da família, como um filho, e me aponta os caminhos mais seguros”, diz a massoterapeuta Francineide da Costa Silva, 25 anos. Neide é guiada no dia-a-dia por Bóris, um labrador de três anos, cor chocolate, que se transformou no amigo de todas as horas e trajetos. Por conta da charmosa companhia, ela até virou celebridade em Santa Maria, cidade-satélite da capital da República.

A presença do animal mudou radicalmente a vida de Neide e dos outros deficientes que fizeram o curso no centro de treinamento do Instituto de Integração Social e de Promoção de Cidadania (Integra), ONG do Distrito Federal que encampou o projeto Cão Guia. Eles aposentaram as bengalas, ganharam mais mobilidade, segurança e independência e melhoraram o convívio social e a auto-estima. “O cão me deu mais liberdade e eliminou completamente os riscos de acidentes”, diz Silvo Góes de Alcântara, 32 anos, casado, pai de três filhos, morador de Sobradinho, funcionário do Procon Central, no Plano Piloto. Seu guia atende pelo nome de Zircon e é um dos quatro irmãos dos labradores canadenses importados em 2002, no início do programa, batizados com nomes de mineral.

Gypsy são os olhos da telefonista Marinalva Pires de Lima, 28 anos, moradora de Taguatinga, funcionária de uma seguradora na Asa Norte de Brasília, que está satisfeitíssima com a parceria. “Acabou o medo de esbarrar num orelhão, pisar na lama, cair no buraco ou bater num galho de árvore. Esses acidentes eram freqüentes. Gypsy desvia de qualquer obstáculo que represente risco”, conta.

Estrela – O mais famoso dos quatro irmãos, Quartz conquistou a aposentadoria depois da fama. Ele foi o labrador amarelo da novela américa, o guia de Jatobá, personagem interpretado pelo ator Marcos Frota. O outro canadense chama-se Níquel, companheiro do atleta de remo Kester Brito da Silva, que reside no Recanto das Emas. No início do ano, Kester foi agredido pelo motorista e pela cobradora de uma Van, que tentaram impedir o cão de viajar. Presos em flagrante, os dois foram condenados e o motorista perdeu a licença de exploração do transporte urbano de Brasília.

O episódio desencadeou uma campanha para conscientizar usuários e operadores do setor de transporte de que o cão guia, inteligente e dócil, não representa nenhum risco. O governo do DF também reforçou o respaldo legal. Além de uma lei distrital, de 2002, a livre circulação em qualquer ambiente é garantida por um decreto federal do ano passado. Todos os deficientes ganham com a lei. A prova disso é Elinaldo Paiva, funcionário da Secretaria de Educação, que mora em Ceilândia. Ele agora entra no ônibus com seu cão sem problema.

O período de treinamento dura de 18 a 20 meses e é aplicado com disciplina de caserna. Inspirado no modelo de uma ONG canadense, a Fundação Mira, que há 20 anos treina animais com sucesso mundialmente reconhecido, o processo de educação do animal é desenvolvido num centro de sete mil metros quadrados, no Setor Policial Sul. Trata-se de uma versão em miniatura de uma cidade, construída com cenários e ambientes com tudo o que o deficiente e seu guia vão encontrar pela frente a vida inteira: ruas, sinais de trânsito, passagens, ambientes fechados e muitos obstáculos que, se o cão não for treinado a desviar, representarão sempre um alto fator de risco.

Numa adaptação da técnica aos padrões brasileiros, o animal é ensinado até a desobedecer: durante o curso o treinador retira a tampa de um bueiro, afunila o corredor e repete várias vezes a ordem de travessia. Mas ele não atende e recua. “É a desobediência inteligente”, explica o treinador e coordenador do projeto, Carlos Dias, soldado bombeiro, que fez curso no Canadá e desenvolveu a técnica. Se o animal não aprender a desobedecer no momento certo, o deficiente visual cai no buraco. Nos últimos 40 dias do curso o seu futuro dono fica com o animal, ocupando uma residência ao lado do canil.

A fila de candidatos – de Brasília e de outros Estados – a um cão-guia tem 140 nomes, uma demanda muito acima das condições de atendimento. A ONG brasiliense pretende entregar de 15 a 18 animais por ano. Para evitar ingerência política e garantir um atendimento justo – que priorize cegos de baixa renda –, a fiscalização e o controle deverão ficar por conta do Ministério Público.

“O projeto está consolidado, não tem volta e, se houver interesse, pode ser estendido a outras capitais. A população está tomando consciência da parceria. Vamos em frente”, diz a presidente do Integra, Weslian Roriz, primeira-dama do DF. O projeto Cão Guia foi precursor de outros programas voltados aos deficientes visuais do DF – um universo de seis mil, segundo o IBGE, 1.860 deles cadastrados pelo Integra. Um deles, em fase de gestação, está sendo chamado de Bengala Amiga e será lançado oficialmente em 13 de dezembro. Dotada de sensores eletrônicos, a bengala será uma poderosa ferramenta de segurança. Sua eficiência está num dispositivo de alerta que vibra a uma distância de pelo menos um metro e meio antes que o deficiente trombe com qualquer obstáculo que esteja acima do nível de seu tórax.

O Integra também desenvolveu um curso de visão virtual. Nele, através de um software de sintetização de voz, o cego aprende digitação e informática para operar um computador usando o teclado padrão. Ministrado por um deficiente, Valter Júnior de Melo, o curso forma em média 100 alunos por ano.

Na semana passada, a ONG entregou à diretoria do Detran de Brasília um conjunto de propostas para adequar o trânsito às necessidades dos deficientes visuais. “Será uma revolução e vai começar por aqui”, afirma a vice-presidente do Integra, Lúcia Bittar. As sugestões passam pela colocação de faixas especiais de pedestres em pontos estratégicos, sonorizadores, mudança na posição de postes e placas e informações em braile sobre trajetos nos pontos de ônibus.