A maioria dos americanos costumava responder sem hesitação onde estava e o que fazia precisamente às 12h30 do dia 22 de novembro de 1963, no momento em que foi anunciada a morte do presidente John Fitzgerald Kennedy. Uma grande porção do restante do mundo também era capaz de puxar por esta lembrança. Quarenta anos depois daquele episódio marcante da consciência universal, a memória começa a falhar.
A média de idade dos mais de 290 milhões de habitantes dos Estados Unidos é de 35,9 anos, colocando a maior parte dessas pessoas em grupos etários que ou não haviam nascido quando Kennedy foi assassinado ou estão submersos na senilidade que apagou o passado. Kennedy mesmo viveu até os 46 anos. É claro que quase todo mundo sabe o que aconteceu com o 35º presidente. Apenas não tem mais guardado em si aquele hiato temporal congelado. Isso, agora, para os menores de 40 e o resto da humanidade, fica a cargo da televisão. E ninguém poderia ser mais apropriadamente memorado por este veículo, pois JFK foi o primeiro presidente telegênico da história. Uma qualidade, diga-se, que foi bênção e castigo, já que esta mídia cria mitos. E o que sobrou da figura humana foi apenas o mito.

A Casa Branca de John Kennedy foi povoada por filósofos, pensadores, cientistas e políticos brilhantes, que compunham aquilo que se chamou
de “Camelot”, uma menção à mesa-redonda de súditos do mítico
Rei Arthur. A mitificação, como se vê, teve ampla participação do personagem principal. Já na campanha eleitoral que o levaria a Washington, o candidato democrata, o então senador Kennedy, de Massachusetts, enfrentou seu rival republicano, o então vice-presidente Richard Nixon, no primeiro debate televisivo da história. O republicano era um debatedor poderoso, mas infelizmente (para ele) não tinha o mínimo de jogo de cena. Não namorava com as câmeras, como seu jovem oponente. “JFK lembrou aos Estados Unidos que o país era jovem. Ele deu aos americanos esperanças para o futuro e uma sensação de que tudo era possível para nós”, diz o famoso jornalista Ben Bredlee, amigo do presidente e, na época, diretor da revista Newsweek.

Foi a vitória do estilo sobre a substância e a inauguração da era
da celebridade eletrônica na política, que de um modo ou de outro permanece até hoje. “O que é lembrado da presidência de Kennedy é muito pouco: seu prodigioso apetite sexual e infidelidade matrimonial;
suas atuações decisivas na construção do muro de Berlim, em 1961,
e na crise dos mísseis em Cuba, em outubro de 1962; e, é claro, o assassinato”, diz o historiador Herbert McClellen, ligado à Biblioteca Presidencial John F. Kennedy.

Baía dos Porcos – Uma das vantagens colhidas pelo mito Kennedy
é que, na época, nenhum repórter teve coragem de apontar que o rei estava nu, no sentido figurado e ao pé da letra. Kennedy manteve relações com mulheres tão variadas quanto Judith Campbell, que tinha ligações com o mafioso San Giancana, passando por estagiárias da Casa Branca, à la Monica Lewinsky, até a estrela Marilyn Monroe. A fieira de amantes é maior do que a de todos os outros presidentes juntos – incluindo-se aí Bill Clinton.

Mitologias são insubstanciais. Assim, o mito de Kennedy lhe negou, post-mortem, a materialidade de sua presidência. Perpetuam-se as lendas. Por exemplo: apenas 18% dos americanos acreditam que Lee Harvey Oswald, sozinho, empunhando uma carabina italiana antiquada, foi autor dos disparos que mataram Kennedy. Dos entrevistados, 78% acham que as conclusões da Comissão Warren, encarregada de investigar o assassinato, são incompletas ou encobrem complôs. Os inúmeros documentários televisivos, livros e filmes sobre o episódio forjaram essas certezas. Pouco importa que agora, na era das simulações computadorizadas, a própria televisão esteja mostrando que Oswald é mesmo o único culpado e a Comissão Warren tinha razão. Imprimiu-se indelevelmente na consciência das pessoas as teorias conspiratórias.

A realidade da 35ª Presidência americana é muito mais complexa e interessante do que sua lenda. Ela é repleta de fracassos e sucessos – além de iniciativas legislativas que se colocariam, nos anos seguintes, entre as maiores conquistas da democracia do país. As derrotas
chegaram primeiro. Em abril de 1961, três meses depois de sua
posse, o presidente tomaria para si a responsabilidade da malograda invasão da Baía dos Porcos em Cuba. Foi a tentativa de tomar, manu militari, o poder na ilha, usando uma força expedicionária de exilados contra o regime de Fidel Castro. “A Baía dos Porcos foi o combustível
que Castro precisava para pedir aos soviéticos a colocação de mísseis nucleares em seu território, bem no quintal americano”, diz ninguém
menos do que Robert McNamara, ex-secretário da Defesa de Kennedy, uma espécie de Donald Rumsfeld da época.

Amante compulsivo – Paranóico com a invasão da Baía dos Porcos,
Fidel Castro insistia com a União Soviética na instalação de mísseis nucleares em seu país. Em meados de 1962, aviões espiões americanos localizaram a montagem das plataformas de lançamento. Kennedy ordenou o bloqueio naval da ilha. Durante 13 dias de oububro de 1962 o mundo viveu à beira de um conflito que facilmente poderia degenerar numa hecatombe nuclear. A firmeza de propósitos de Kennedy – contra militares linha dura do Pentágono, que desejavam um ataque imediato, e ao mesmo tempo dando mostras claras a Kruchov de que os americanos não arredariam pé de suas posições – fez com que a URSS finalmente concordasse em retirar os mísseis.

“As vitórias na política externa são as mais visíveis, pois salvaram
o mundo de um possível apocalipse nuclear. Mas existem sucessos
no front doméstico que representam conquistas superlativas”, diz o professor Arthur Schlesinger Jr., ex-conselheiro de Kennedy. “A quebra
da segregação racial no Sul do país e a agenda de legislação de direitos civis foram as maiores propostas políticas da administração Kennedy. Infelizmente, ele não viveu para saborear a vitória. Mas seu sucessor, Lyndon Johnson, iria implementar esse conjunto legislativo que é um
dos maiores avanços sociais na história do país”, diz o professor.
E essas mesmas sementes perfazem um legado que ultrapassa até
os maiores vôos de imaginação da mitologia em que John Fitzgerald Kennedy foi enclausurado.