A marca registrada de Hélio Santos é a provocação. Inteligente, loquaz, rápido, Santos, 58 anos, sedimenta bons argumentos em anos de estudos da história e da política brasileiras. Um dos mais respeitados militantes negros do Brasil, esse professor universitário mineiro, mestre em finanças e doutor em administração pela Universidade de São Paulo, autor do livro
A busca de um caminho para o Brasil
, não
poupa ninguém na hora de discutir o racismo no Brasil e as políticas públicas que deveriam ser implementadas para sanar esta dívida de 350 anos de escravidão. Santos afirma que até agora “não há propostas para o Brasil de carne e osso” e que só seremos salvos do abismo da desigualdade social se levarmos em conta uma política real de inclusão, que, segundo ele, deveria ser pautada pelo movimento negro. “A esquerda sempre falou dos excluídos, mas todos os seus militantes são da classe média, estudam inglês e nos bons colégios e não percebem a taxa de letalidade das periferias brasileiras. Isso só acontece quando um jovem casal da classe média é assassinado de uma maneira brutal”, afirma o professor. Como um instrumento para reverter as consequências do racismo, Santos propõe o que chama de tecnologia da inclusão. Essa e outras audaciosas idéias, ele explanou nesta entrevista exclusiva a ISTOÉ.

ISTOÉ – Como o sr. encara a adoção de políticas de ação afirmativa, como o estabelecimento de cotas para os negros que algumas instituições no Brasil vêm adotando?
Santos
– Políticas de ação afirmativa são em geral adotadas para
grupos que sofreram prejuízos durante muito tempo. São políticas
para compensar essa defasagem histórica. Mas temos que lembrar que o Brasil é precursor mundial da política de ação afirmativa. A primeira aconteceu em 1818, quatro anos antes da independência: foi quando dois mil suíços chegaram aqui e foram colonizar Nova Friburgo.
Depois, foram os alemães para São Leopoldo. Mas o Brasil, que
adotou a ação afirmativa para grupos europeus, foi o último país
a abolir a escravidão. Também nos lembremos que metade das vagas
das escolas rurais era reservada para filhos de proprietários rurais. O Estado Novo de Getúlio Vargas criou a lei dos dois terços, garantindo vagas para brasileiros em empregos nas empresas. Portanto, o Brasil adotou a ação afirmativa muito antes dos EUA. A única novidade é que essas políticas, agora, estão sendo implantadas para beneficiar os negros excluídos. Eu na verdade sou contra a cota para negros; sou a favor da redução da cota de 100% para brancos.

ISTOÉ – Como o sr. vê a criação da Secretaria da Promoção e Integração Racial (Sepir) pelo governo Lula?
Santos
– Ainda é cedo para fazer uma avaliação da secretaria. A minha expectativa é que, considerando o acerto do movimento social negro, que conquistou essa secretaria, se possa conseguir um bom trabalho. O fato é que todos os avanços que estamos observando na questão racial no Brasil são fruto da luta do movimento negro. Inúmeras universidades estão adotando políticas de cotas em função dessa atuação. Já nas empresas, as pesquisas mostram uma grande ausência de negros em posições de comando, de direção. O desafio da Sepir é não apenas fazer com que os negros cheguem à universidade, mas sobretudo com que eles façam bom uso do diploma.

ISTOÉ – No seu livro o sr. diz que um dos desafios para a erradicação do preconceito no Brasil é o fato de existir um
“racismo cordial” do qual nem os educadores escapam.
Como é possível romper esse impasse?
Santos
– Através do que eu chamo de “pedagogia reversiva”.
Ninguém nasce racista. Assim, por exemplo, uma das primeiras leis
do governo Lula determina que as escolas devem ensinar história da África e a história do negro no Brasil. Em larga medida, o racismo tem muito a ver com aquilo que as pessoas imaginam ser a África. Então, é muito importante que conheçamos a história da África. Agora, veja que coisa fantástica: todos estudamos a história do Egito e não nos damos conta de que o Egito está na África…

ISTOÉ – Nesse sentido, as declarações do presidente Lula na Namíbia, que disse que o país era limpo e organizado e nem parecia ser africano, se encaixam nesse contexto?
Santos
– É exatamente isso. O presidente Lula não é presidente de Saturno nem de Netuno. Ele é presidente do Brasil. Esse estereótipo
da África está internalizado em larga medida nos brasileiros. Nesse
sentido, podemos dizer que as declarações do Lula são incompatíveis
com as idéias de seu ministro da Cultura (Gilberto Gil), que tem um
refrão de uma música que diz: “Eta branco sujão!”, falando da sujeira do desenvolvimento da sociedade industrial branca. Mas não sou eu quem irá cobrar coerência do presidente; ele fez uma afirmação que apenas reflete o que os brasileiros pensam da África. Mas, voltando à pergunta anterior, mais importante do que estudar a história da África é estudar a história do negro no Brasil. O efeito disso, que eu chamei de contrapedagogia, será diferente: para uma criança branca, vai ajudá-la a não discriminar e a se orgulhar de uma cultura que também é dela; para uma criança negra, vai fortalecer sua auto-estima e sua identidade. Portanto, a revolução possível no Brasil passa pela mudança na escola.

ISTOÉ – Muitos críticos dizem que por
trás da idéia de democracia racial houve uma verdadeira ideologia do “embranquecimento”. Como o sr. vê a questão da identidade
do brasileiro?
Santos
– Originalmente, a miscigenação não é integradora. Ela nasce sob o signo da violência
do homem branco contra a mulher índia e,
depois, a mulher negra. Agora, o resultado dessa miscigenação, pode-se dizer, foi positivo. Quando comecei a escrever meu livro, nos anos 90, eu dizia que, no Brasil, todos em larga medida tinham sangue negro ou índio. Pois bem, em 2000 um geneticista da UFMG, Camilo Pena, mostrou que, de cada dez brasileiros, só quatro são brancos. Os outros seis, pela matriz materna, são índios ou negros. De qualquer maneira, existe uma romantização da mestiçagem. Não que eu ache que a mestiçagem seja algo negativo. Ela torna nossa diversidade mais múltipla ainda, o que nos torna mais ricos. Mas esse discurso sempre houve e, ao mesmo tempo, a exclusão também. Quanto à questão da identidade, como eu defino no meu livro, nós temos uma “identidade mosaica”. A idéia de identidade única só é possível no Japão, no Alasca. A riqueza brasileira está justamente nesse mosaico. É muito comum, quando se fala em políticas públicas, perguntar: quem é negro no Brasil? Eu tenho devolvido a pergunta: e quem é branco? Ora, ninguém é inteiramente branco ou preto. Temos imigrantes de vários países europeus, mas também tivemos cerca de 1.500 nações indígenas e várias tribos negras vindas da África. Fala-se muito como a cultura negra influenciou nossa cultura: pela musicalidade, pela religiosidade, até pela sexualidade. Mas todos nós também somos imensamente índios. O sentimento dos índios que desapareceram migrou para dentro de nós. Herdamos deles um intenso sentimento ecológico, por exemplo.

ISTOÉ – Como é possível, num país de brutal desigualdade
como o Brasil, falar em políticas públicas focalizadas para determinados segmentos?
Santos
– Existe uma coisa que eu costumo chamar de MSN, o Movimento dos Sem Nada a Perder. Trata-se de uma população muito grande, que precisa de uma pauta política. Já houve uma mostra da força desse MSN: despossuídos invadindo supermercados ou fazendo arrastões em praia. E não há partido que tenha uma proposta para esses despossuídos. O governo que acabou de ser eleito tem a honestidade de vir a público e dizer que não há um modelo alternativo que possa substituir o desenvolvimento de cunho conservador para um desenvolvimento mais veloz com inclusão social. Mas isso não é verdade. Quem pode pautar essa reivindicação é o movimento social negro, que já falava nisso desde os anos 70. Trata-se da verdadeira modernização, que significa inclusão social. O espetáculo do crescimento do presidente Lula não me interessa. Eu quero é o milagre da inclusão. Desenvolvimento e crescimento econômicos o Brasil já teve. Entre 1930 e 1980, fomos o país que mais cresceu no mundo. Portanto, não adianta o ministro Antônio Palocci dizer agora: “Empresários, o Brasil está pronto para crescer.” Não, o Brasil sempre esteve crescendo. Se retomarmos o desenvolvimento, ele terá que ter uma proposta para os milhões de analfabetos funcionais, pessoas que não atingiram a quinta série, pessoas para as quais não tem que ser discutido o trabalho, mas a empregabilidade. Temos que dar a estas pessoas condições de entrar no mercado de trabalho. Não há proposta para o Brasil de carne e osso. Toda a terapêutica proposta pelo governo Fernando Henrique Cardoso e, agora, pelo governo Lula está fadada ao fracasso. Porque o diagnóstico está errado. Não adianta falar só da pobreza. Nós temos que entender que no Brasil a pobreza tem cor e tem procedência. A origem, a matriz desse tratamento se origina na escravidão, e para exorcizar esse demônio é necessário incluir os negros na sociedade produtiva. Temos que desenvolver o que eu chamo de TI, tecnologia de inclusão. A tecnologia em larga medida exclui as pessoas.

ISTOÉ – O que seria essa tecnologia de inclusão?
Santos
– É muito comum elogiar os japoneses pelo fato de eles terem desenvolvido tecnologias, sendo que, na verdade, eles copiaram as técnicas dos americanos adaptando-as à sua realidade. E qual é a realidade dos japoneses? É uma realidade de escassez. O Japão é um arquipélago onde um apartamento de 70 m² é uma mansão. A tecnologia no Brasil tem que ser adaptada à realidade brasileira, de uma superoferta de mão-de-obra. A tecnologia da inclusão consiste em alterar as inovações tecnológicas de forma que elas proporcionem cidadania integral para os excluídos e incluídos. E aí usar uma coisa que esse país sempre teve, a criatividade. Para se reverter uma saga que se confunde com a própria história do Brasil, não dá para usar tecnologia da Dinamarca ou do Japão, onde todos estão incluídos. Acho patético quando vejo economistas e empresários discutindo a tecnologia nessa perspectiva. Uma coisa é a competitividade que as empresas têm que ter para trabalhar no plano internacional. Outra coisa é essas empresas desenvolverem e produzirem bens de serviço até para o mercado interno. Na falta de um outro nome, eu desenvolvi um conceito que chamo de “socialismo de mercado”. O nome em si já é provocador. Ora, de um lado, tem-se essa vertente socialista importante que pode ser entendida como igualdade de oportunidades e tratamento igualitário. Do outro lado, trabalha-se com as idéias capitalistas de que as pessoas até têm medo em reconhecer, que é a qualidade e, sobretudo, a eficácia. Assim, devemos criar cooperativas para produzir bens como alimentos, vestuário, ou seja, uma demanda para esses cidadãos (50 milhões), quase um terço da população que vive na exclusão. O governo Lula ou qualquer um que queira dar conta desses desafios terá que usar a criatividade. E digo que essa mesma terapêutica não é indicada apenas para o Brasil, mas também para a Argentina, a Índia e a China, ou seja, países com vastos recursos naturais e com populações significativas. E o governo terá sim que recorrer aos nossos credores internacionais. Pagaremos, mas teremos que sacrificar a metade para a inclusão desses 50 milhões de habitantes. E quem deve pautar o governo é o movimento social negro. Isso por uma razão óbvia: somos nós os derradeiros subversivos do Brasil. Os subversivos dos anos 60 e 70 estão no poder e continuam com o velho discurso. Temos que viabilizar o Brasil para os brasileiros, com medidas ousadas, inusitadas, mas que possam proporcionar a tecnologia de inclusão.

ISTOÉ – Existe já essa teoria na prática ou está apenas no
plano das idéias?
Santos
– Hoje, o próprio governo e a academia falam em economia solidária. Eu não acredito que isso seja o que eu denomino de tecnologia de inclusão. É necessário empresas que possam ter capacidade competitiva, no sentido da eficiência. Essas cooperativas terão como proprietários os seus trabalhadores, que serão também clientes dessas empresas. E se isso não acontecer em escala, iremos “favelizar” o campo. A reforma agrária precisa acontecer, mas esses pequenos fazendeiros têm que ser produtores prósperos, que usufruam da tecnologia e ganhem com isso. Isso é possível não com uma fazenda isolada, mas com 60, 70 propriedades rurais, socializando a tecnologia. E repito, o movimento social negro é quem pode pautar essas políticas. Não creio que o que se convencionou falar como movimento progressista, a esquerda, possa cuidar disso. Esse movimento sempre falou dos excluídos, dos pobres, mas todos esses militantes são pessoas da classe média, bem incluídas, estudando inglês e nos bons colégios. São pessoas que não percebem a taxa de letalidade das periferias brasileiras. As pessoas só percebem essa taxa quando um jovem casal da classe média é assassinado de uma maneira brutal. É quando se percebe realmente o que se está em jogo.