Eram pontos diminutos boiando em placas de cultura. Aparentemente insignificantes, mas preciosos. No domingo 25, a empresa americana de biotecnologia Advanced Cell Technology (ACT) se apressou em contar ao mundo que conseguiu clonar os primeiros embriões humanos, embora nenhum deles tenha sobrevivido. As técnicas de criação tampouco tiveram o mérito do ineditismo, pois já são testadas em animais. Mesmo assim, se no futuro a clonagem humana der frutos – seja com o objetivo de curar doentes, seja para reproduzir a vida –, terá sido no pequeno laboratório da ACT, em Worcester, Massachusetts, que tudo começou. Seus pesquisadores acionaram os motores da fábrica da vida num cenário de faroeste que faz lembrar a corrida para desvendar o genoma humano, a coleção de genes com as instruções para produzir um ser vivo. Em junho de 2000, a empresa privada Celera decifrou 98% do DNA humano, atropelou o consórcio público de pesquisa Projeto Genoma e colocou as informações à venda por U$ 10 milhões. Dona de sete patentes para a técnica de clonagem de bois e de porcos, a ACT já entrou com pedido para registrar os diversos estágios de seu novo experimento. Ou seja, o embrião tornou-se propriedade intelectual.

Um dos líderes da experiência, o veterinário argentino José Cibelli, admitiu que tirou das pipetas de laboratório algo ainda “muito preliminar” para ser publicado em revistas científicas de renome. Seu objetivo era provar que o experimento pode funcionar antes de o Senado americano votar o projeto de lei que proíbe investimentos públicos para a clonagem. Há duas semanas, a ACT comemorou a geração do primeiro grupo de clones de animais perfeitos. De 30 vacas nascidas há quatro anos, 24 estão vivas e sem problemas genéticos. Os cientistas não têm dúvidas: se os animais podem ser clonados, o ser humano também pode. É tudo uma questão de tempo e de sorte. Depois do anúncio da clonagem, aconteceu o que se imaginava: as ações das empresas de pesquisa genética se valorizaram, e há rumores de que a ACT vai abrir seu capital para negociá-las nas Bolsas de Valores.

Para clonar os embriões humanos, a ACT utilizou duas técnicas: a clonagem e a partenogênese. Na primeira delas, a equipe removeu o núcleo de óvulos de doadoras e através de pulsos elétricos fundiu neles células adultas da pele e dos ovários (leia quadro). Para que esse híbrido se reproduzisse e originasse um embrião, ele foi induzido a despertar genes “adormecidos” em seu núcleo. Na outra técnica, óvulos foram estimulados a se dividirem e a se multiplicarem sem a presença do espermatozóide. O fenômeno já acontece com aranhas e abelhas, que ficam grávidas sem pai, e foi repetido recentemente em ratos. Tanto na clonagem quanto na reprodução assexuada, as chances de nascerem embriões com anomalias são enormes porque eles não carregam o material genético completo – da mãe e do pai – para se reproduzirem como mandam as leis da natureza. Em muitos experimentos com animais, os clones nascem com menos peso e tamanho menor, posição dos dedos invertida e problemas respiratórios.

Há cinco anos, o argentino José Cibelli tentou clonar a si mesmo. Raspou a pele da bochecha, cultivou as células e as fundiu ao óvulo de uma vaca, sem sucesso. Assim como Cibelli, os dois maiores executivos da empresa ACT, Michael West e Miller Quarles, também sonham com a eterna juventude. Quarles é um petroleiro texano de 83 anos que se vangloria de seu apetite sexual. West, 47 anos, é biólogo, foi dono da Geron.Corp, que estuda a cura para o envelhecimento, e afirmou que gostaria de ser o primeiro a chegar aos 200 anos.

É com o objetivo de prolongar a vida ao máximo que a equipe da ACT investiu na clonagem. O grupo jura que não quer utilizar a técnica para reproduzir seres humanos. Seu interesse seria pela clonagem terapêutica e pela promessa que ela traz de curar milhões de doenças a partir do uso das células-tronco, espécie de curinga natural que se transforma em tecidos que revestem outros órgãos do corpo, sem o risco da rejeição. Por enquanto, nem a clonagem terapêutica é consenso porque é preciso destruir os embriões antes de transformá-los nesses tecidos específicos. Afinal, a partir de qual estágio o embrião começa a ter vida? Nos primeiros três dias após a fecundação, o óvulo já se dividiu em seis a oito células iguais, cada uma capaz de tomar qualquer direção, com a mesma possibilidade de virar uma célula do sangue, da pele ou do cérebro. Nos três dias seguintes, o embrião já tem de 16 a 32 células, que lentamente começam a se organizar e se distinguir umas das outras. Ao final desse período, elas atingem o número de 100 células e cada uma está com o destino traçado dentro do organismo. A diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano Brasileiro da Universidade de São Paulo, Mayana Zatz, defende a utilização dos embriões para recompor os tecidos doentes. “Existem hoje 80 mil pessoas no Brasil que sofrem do mal de Duchenne, doença genética que provoca degeneração dos músculos do esqueleto. Os pais das crianças que atendo estão desesperados com a possibilidade de essa terapia ser vetada por causa da polêmica”, diz Mayana.

A clonagem ainda trouxe à tona outro dilema desprezado por um silêncio obsequioso e culposo: a manipulação de embriões em laboratório para fertilização in vitro e reprodução assistida. “Na prática, utiliza-se uma dúzia de embriões e implantam-se quatro. O resto vai para a pia, para o lixo ou é congelado em nitrogênio líquido”, explica Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. Nos Estados Unidos, pelo menos 100 mil embriões estão congelados para inseminação artificial. “Só descartamos os que não se desenvolveram. Temos 300 congelados porque não sabemos se a paciente vai engravidar ou se o bebê pode nascer morto”, explica Paulo Serafini, diretor do Centro de Medicina Reprodutiva Huntington, que deve anunciar esta semana o nascimento do primeiro bebê brasileiro feito por fertilização in vitro a partir de um óvulo congelado. A mãe, de 42 anos, tem menopausa precoce e há três congelou seus óvulos. No início de 2001, eles foram fertilizados pelo sêmen do marido e transferidos para seu útero.

Ao contrário da fusão nuclear, que criou a bomba atômica e a radiação para matar as células cancerígenas e foi discutida em sigilo como um assunto de segurança nacional, o debate sobre riscos e benefícios da clonagem ganha as ruas ao mesmo tempo em que as pesquisas avançam. A maioria dos países proíbe a clonagem, e a Inglaterra é um dos poucos que pretendem aprovar uma lei autorizando a técnica para fins terapêuticos. No Brasil, ela é proibida pela Lei de Biossegurança. Assim como a guerra é coisa séria demais para ser decidida só por generais, a ciência também é algo complexo demais para ser decidido só entre cientistas, opina Volnei Garrafa. Ou para ser tema de novela, se não houver cuidado com as informações. Com 42 pontos de audiência, a novela O clone, da Rede Globo, é criticada por geneticistas por produzir desinformação. “Logo na primeira tentativa, o cientista cria um clone lindo e perfeito. Não é tão fácil assim”, diz Mayana Zatz.

Enquanto na ficção o clone foi gerado sem alarde, na realidade os cientistas correm contra o tempo para entrar para a história. Como a polêmica pode barrar os investimentos públicos, quem chegar na frente tem mais chance de angariar fundos da iniciativa privada. O ginecologista italiano Severino Antinori, que prometeu clonar o primeiro ser humano, acusa a ACT de roubar sua idéia e continua trabalhando em sigilo. A seita religiosa dos raelianos, dona da clínica de fertilização Clonaid, avisa que já passou do estágio embrionário da ACT. “Só vamos divulgar quando tivermos a garantia máxima de que o material genético do doador foi repassado para o embrião e o clone estiver para nascer”, afirma David Uzal, o representante da seita no Brasil. Nesse faroeste científico, o filósofo americano Jeremy Rifkin é profético: “Nossos filhos poderão viver em um planeta onde as multinacionais da biogenética serão proprietárias da vida humana.”

Colaboraram Celina Côrtes (RJ) e Mônica Tarantino (SP)

Arca de Noé

No reino animal, a clonagem não suscita debates éticos e sua aplicação tem causa nobre: preservar espécies ameaçadas de extinção. Se tudo der certo, em 2002 o Brasil terá o primeiro banco genético de mamíferos em via de desaparecer. Será instalado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no Centro Nacional de Pesquisa para a Conservação de Predadores Naturais, em Sorocaba, interior paulista, e armazenará embriões e fragmentos de órgãos e pele de 26 predadores brasileiros, como onças, lobos, ariranhas e jaguatiricas. O material será usado para inseminação artificial e clonagem. Cerca de 15 instituições de pesquisa foram contatadas para aderir ao projeto. “A população está diminuindo e há um elevado grau de parentesco, o que acarreta perda da variedade genética e problemas congênitos, como defeitos nas patas”, explica o veterinário Ronaldo Gonçalves Morato, da ONG paulista Associação Pró-Carnívoros, que armazena em botijões de nitrogênio o sêmen da onça-pintada. Nesta semana, Morato vai embrenhar-se no Pantanal para colher mais sêmen de onça. No ano passado, a própria ACT investiu na preservação animal. Clonou o gauro, boi selvagem da Índia, batizado de Noé, que morreu por infecção.