Imagine um instrumento para ser tocado por 28 músicos simultaneamente. Sua aparência é de “uma ameba em constante divisão e desdobramento”, na descrição do próprio criador. E sua constituição, absolutamente extravagante, agrega um tronco de bambu de 2,10m de altura, que sustenta um complexo de sete cabaças em forma de estrela, das quais pendem quatro mangueiras de plástico com bizéis (bocais) nas pontas. Este é Pindorama, um instrumento de sopro de afinação aleatória que, com cerca de 150 outras peças, compõe o universo sonoro criado por Anton Walter Smetak, um suíço de coração baiano, ícone da música experimental produzida nos anos 60 e 70 na Bahia, guru dos caciques do tropicalismo. Este acervo foi finalmente recuperado depois de perambular durante anos por corredores de repartições baianas de ensino, exposto à ação do tempo. Na terça-feira 11, as raridades ganham exposição no salão da reitoria da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, com direito a concerto realizado por alguns dos músicos que acompanharam sua trajetória. O pacote-restauração de Smetak ainda inclui o lançamento de A simbologia dos instrumentos – livro no qual enuncia os postulados de suas criações, um dos 32 que escreveu, entre teses, poemas e peças de teatro – e a reedição em CD dos dois únicos discos que deixou gravados, Smetak, de 1974, e Interregno & o conjunto de microtons, de 1979.

Trazer novamente à tona o nome de Smetak só foi possível graças ao programa Faz cultura, da Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, com recursos da Copene, e fundamentalmente à insistência de Bárbara Smetak, curadora da obra do pai. “Parece incrível que isso tudo foi feito. A edição do livro era o que ele mais queria e batalhou na vida”, lembra Bárbara. A obra de Smetak teve a pretensão de unir Oriente e Ocidente, assim como a de quebrar a barreira entre o erudito e o popular, plugando-os ambos ao cosmo. “Os eruditos nada sabem de cosmologia, por isso são dominados por sua criação, ao invés de dominá-la”, disse ele certa vez. “Os populares sentem mais do que sabem o que sentem e por isso se satisfazem em tocar para a lua.” Sua preocupação com a criação de instrumentos dos quais pudesse extrair novos sons evidentemente não se restringia ao caráter técnico. Interessava o sentido filosófico e escultural, com o qual criou boa parte das peças, genericamente chamadas de plásticas sonoras. Todas invariavelmente feitas com sucata ou material barato.

Basta dar uma olhada em alguns destes exemplares para ter uma idéia do caráter transgressor e inventivo:

Pistom cretino

, formado por funil, mangueira e bocal de trumpete;

Bicéfalo

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, composto de dois braços de guitarra partindo de uma mesma caixa de ressonância em sentido cruzado;

Quarteto de choris

, série constituída de cabo de vassoura, cabaça e coco, que “nem chora, nem ri”, daí o nome; ou mesmo

Colóquio

, instrumento de percussão montado em dois vergalhões de ferro que se cruzam, formando um x – de suas extremidades pendem duas cabeças em “constante diálogo”, nas palavras de seu criador. Ah, claro, há também a

Vina

, instrumento apontado por ele próprio como sua criação mais perfeita. Para executá-lo, o concertista deve observar alguns procedimentos, como está especificado em

A simbologia dos instrumentos

. Ou seja, tocar de costas para o público, vestido com uma capa branca, munido de duas máscaras – devendo uma delas ser colocada na parte traseira do crânio – e encarnar o papel de “um Dalai Lama ou de um papa”, embora esteja descartado de cara qualquer caráter ritualístico. “A Vina deixa nervoso quem a toca, porque não é uma coisa fixa. Os músicos reclamam que ela está sempre fugindo”, contava ele.


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