Com o surgimento do DVD, que permite uma capacidade maior de armazenamento de dados, os filmes passaram a vir acompanhados de uma cornucópia de informações, imagens alternativas, entrevistas com figurantes, itens na maioria das vezes de pouca ou nenhuma utilidade para a maioria dos mortais. Mas felizmente os recursos extras puderam ser estendidos à literatura. Um exemplo é Alice – edição comentada – Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho (Jorge Zahar, 328 págs., R$ 38,50), de Lewis Carroll, com introdução e notas de Martin Gardner, que poderia ser considerado a versão impressa de um DVD. Seu cardápio é muito saboroso. Além das versões integrais dos dois livros, a análise de Gardner – dono de uma cultura cuja abrangência vai “da matemática a Sherlock Holmes” – traz as ilustrações originais de John Tenniel, bibliografia selecionada, uma lista de filmes feitos sobre a personagem e, por incrível que pareça, um capítulo inédito de Através do espelho. O marimbondo de peruca foi vetado na edição original porque Tenniel se recusou a desenhá-lo, alegando estar “além dos instrumentos da arte”.

O texto, que permaneceu ignorado por quase um século, só chegou ao público em 1977, quando as provas foram a leilão pela conceituada Sotheby’s de Londres, que optou por não identificar o dono, provavelmente alguém da família do autor. Falar de Alice é entrar no universo de Charles Lutwidge Dodgson – verdadeiro nome de Carroll –, durante meio século professor de matemática da Christ Church, alma mater de Oxford, autor de centenas de livros de lógica, adivinhações e jogos. A matemática era uma de suas paixões ao lado da fotografia e das crianças, exclusivamente do sexo feminino, deixava bem claro. As fotos que fez foram consideradas precursoras em termos técnicos e artísticos, sem contar a ousadia de clicar ninfetas descalças, em poses hoje consideradas provocantes. Mas, no dia 4 de julho de 1862, o professor da Christ Church estava sem sua câmera. Carroll, aliás Dodgson, então com 30 anos, passeava de barco em companhia das três filhas do deão Henry Liddell, seu superior em Oxford. Eram elas Lorina, de 13 anos, Alice, de dez, e Edith de oito. A uma certa altura, provavelmente aborrecida com tanta tranquilidade, Alice lhe pediu que contasse uma história. Sem titubear, o normalmente sisudo professor iniciou uma narrativa que revolucionaria a literatura mundial.

Suas palavras foram: “Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer…”, exatamente a abertura de

Pela toca do coelho

, primeiro capítulo de

Aventuras de Alice no país das maravilhas

, publicado em 1865.

Através do espelho

saiu em 1871. Como se sabe, Dodgson morreu solteiro. Crescida e casada, Alice batizou seu terceiro filho de Caryl, dizendo-se inspirada num romance jamais identificado pelos biógrafos. A semelhança entre os nomes deve ter sido um prato cheio para alguém que apreciava os trocadilhos e os jogos de palavras. Caso de Lewis Carroll, cuja vida daria um DVD e tanto.