Com um ar sério, reforçado pelo rosto encovado e pelas sobrancelhas espessas e juntas, George Harrison era chamado de “o beatle quieto”. O silêncio, agora, será eterno. Derrotado por um câncer na garganta, Harrison morreu na quinta-feira 29, em Los Angeles, às 13h30, hora local, ao lado da mulher, Olivia, e do filho, Dhani, na casa de um amigo de longa data. A notícia foi mantida em segredo e divulgada para o mundo somente na madrugada da sexta-feira 30. Com a morte do guitarrista, cantor e compositor desintegra-se de vez o sonho cultivado por milhares de fãs dos Beatles de um dia vê-los novamente no palco – uma esperança que nunca se desmanchou, mesmo depois do assassinato de John Lennon, em 8 de dezembro de 1980. A lembrança trágica daquele dia volta, assim, a ecoar na cabeça dos beatlemaníacos que, com certeza, estão de luto.

Mais famoso conjunto da história do rock, os Beatles até hoje conquistam e mantêm fãs de diversas gerações. Rita Lee – que recentemente lançou o ótimo álbum Aqui, ali, em qualquer lugar, com versões e canções da banda de Liverpool – conta que foi Harrison quem “aplicou” as influências indianas nos companheiros. “George era o mais espiritualizado dos Fab 4 e não tinha pudores de compor músicas que reverenciavam o Senhor e as divindades todas”, diz a cantora de 53 anos. O ex-piloto Emerson Fittipaldi, 54 anos, que era amigo daquele que disputava com Paul McCartney o posto do mais bonito da banda, está muito triste. Lembra, inclusive, da sua solidariedade quando sofreu um acidente de ultraleve, em 7 de setembro de 1997. À época, para consolá-lo, Harrison mandou uma outra versão da letra da canção Here comes the sun, composta por ele para o álbum Abbey Road, de 1969. “Era um guerreiro. Estava gravando um disco novo, com câncer. Lutou e lutou até o fim. Foi um grande amigo, tinha um coração gigante e era um cara cheio de amor”, afirma Fittipaldi. A comoção também atingiu o mundo encantado da realeza britânica. “Podem dizer que a rainha Elizabeth II está muito triste”, declarou um porta-voz do Palácio de Buckingham. No meio do empresariado brasileiro, o presidente da Globo Cabo, Luiz Antonio Viana, 54 anos, também lamenta a morte do músico. “Os Beatles são o símbolo da minha geração. Claro que John Lennon era o mais libertário, mas Harrison era um bom músico e fez uma carreira solo muito interessante.”

Álbum histórico – Não tão adorado quanto Lennon, mas de importância vital para a sonoridade do grupo, assim que os Beatles se dissolveram em 1970, Harrison lançou um álbum triplo com todas as músicas que compunha e não conseguia emplacar na banda. A capa do trabalho histórico All things must pass, de 1970 e relançado no começo do ano com faixas extras, o mostra no jardim da sua mansão – um verdadeiro castelo de 120 cômodos, batizado de Friar Park –, situada em Henley-on-Thames, nos arredores de Londres. O título do disco Todas as coisas devem passar foi mais do que adequado para a ocasião. Este trabalho iniciou sua carreira solo, interrompida quatro anos mais tarde em meio à turnê de lançamento de Dark horse. Massacrado pela crítica com requintes de crueldade naqueles dias que antecediam a explosão punk/new wave, Harrison só voltaria a pisar num palco em 1992, mesmo assim em uma excursão restrita ao Japão. Neste meio tempo, o ídolo produziu uma dezena de filmes e amargou fracassos monumentais, em geral. Seu prestígio com a crítica voltaria a cintilar em 1987, com o impecável disco Cloud nine.

A vida pessoal, em compensação, correu quase tranquila. Casou-se duas vezes. Primeiro com a modelo Patricia Anne Boyd, a Patti – que o abandonaria em troca do amigo Eric Clapton –, depois com a secretária de sua gravadora, a californiana Olivia Trinidad Arias, mãe de Dhani, hoje com 24 anos. Olivia se tornaria a heroína inglesa do Natal de 1999, ao rechaçar a golpes de abajur um desocupado que invadiu Friar Park e esfaqueou Harrison. Os problemas com o câncer têm história. Em 1998, uma operação impediu momentaneamente o desenvolvimento da doença na garganta. Em maio de 2001 sofreria uma nova cirurgia contra o mesmo mal, desta vez no pulmão. E no ano passado esteve na Suíça tratando de um tumor no cérebro.

Além do solo de guitarra registrado em 2000 para a música (brasileira!) Ana Júlia, incluída no recente CD do baterista inglês Jim Capaldi, o ex-beatle estava agitando um novo disco com várias músicas falando de Cristo. Era a volta à espiritualidade. Na verdade, o caçula dos Beatles nunca foi um roqueiro de sangue. Costumava chamar rock’n’roll de “música de cowboy”, embora interpretasse como poucos os temas de Chuck Berry e Carl Perkins. Nascido no dia 24 de fevereiro de 1943 – e não 25 como pensou durante a maior parte de sua vida –, Harrison era um sujeito bem humorado. No final dos anos 80, quando o ex-colega Paul McCartney resolveu retomar as turnês interrompidas há uma década, perguntaram a ele sobre uma possível reunião dos três componentes originais dos Beatles. “No que me diz respeito não haverá nenhum show dos Beatles, pelo menos enquanto John permanecer morto.” Em relação às Spice Girls, que nos anos 90 ameaçaram repetir a histeria provocada pelos Fab 4, ele saiu-se com esta: “A boa coisa em seus vídeos é que eles são agradáveis de ser vistos. Com o volume desligado.” George Harrison era assim. Cometia as maiores atrocidades verbais com o ar mais formal do mundo. Realmente, todas as coisas devem passar. Exceto a falta que determinadas pessoas fazem.

“Achei muito chata a morte dele. Sei cantar Love me do e Lady Madonna. Ele era aquele de cabelo mais comprido”
Felipe Rousseaux de Campos Mello, 7 anos

“Ele dava o equilíbrio à parte musical, com mais teoria, mais conhecimento. Acho que era o mais elaborado”
Vitor Bara, 20 anos

“Seu estilo simples era inconfundível. Os guitarristas daquela época tinham seus solos nas pontas dos dedos”
Rita Lee, 53 anos

“Era um guerreiro. Lutou e lutou até o fim. Foi um grande amigo e tinha um coração gigante, cheio de amor”
Emerson Fittipaldi, 54 anos

“Sou do tempo do samba-canção, das músicas românticas. Mas meus filhos e meus netos adoram os Beatles”
Mario Amato, 83 anos