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Os apresentadores da televisão argentina avisaram que aquele seria o dia mais frio do ano e estavam certos. Ainda que a manhã portenha apresentasse um sol cheio de timidez e o céu, um traje de azul muito claro, como o véu de uma menina a caminho de sua comunhão, o frio cobrava seu preço e os termômetros despencaram para dois graus negativos. Na esquina da Santa Fé com Callao, onde fui à cata de chuteiras para meus sobrinhos, a aglomeração humana produzia ondas de uma fumaça branca que eram os pensamentos de toda aquela gente em estado gasoso, eu pensei – e ainda imaginei a intricada sopa de emoções que subia aos céus, quando o telefone tocou no bolso do casaco.

– Você já soube? – a voz era conhecida.

A Soberana fez a passagem.

Soberana era como eu chamava Duse Naccarati, desde os tempos em que morávamos na Travessa Pepe, num pequeno prédio, onde durante alguns anos imperou a comédia. Não era uma atriz conhecida do grande público e os críticos quase sempre lhe torciam o nariz, mas não importava. Era amada e respeitada por uma geração de comediantes que conseguiam ver nela aquilo que nem todos eram capazes de enxergar. Duse era uma inspiração e agora mesmo, enquanto escrevo essa crônica, vejo seus lábios, sempre pintados de batom grená (ela dizia gre-nahhh, separando as sílabas e mostrando a fileira de dentes brancos), chamando por mim, na pequena área cimentada do apartamento térreo de Botafogo, onde ela cultivava roseiras que teimavam em prender-se nos seus xales, seus panos e suas bijuterias, porque ela era sempre uma festa para os sentidos.

– Hoje essa roseira está impossível, Príncipe! – ela me chamava assim e eu tenho tantas saudades de ouvir o seu chamado, meu Deus! Tanta vontade de mandar o tempo voltar e recuperar aquilo que se foi na enxurrada e que ainda hoje repousa naquele quadrado de cimento perdido na tarde de Botafogo, eu penso.

O termo tiete, hoje verbete do mestre Aurélio, foi criado por ela, que roubou o nome de uma colega de funcionalismo público. Tiete, segundo Duse, era aquela que entrava numa sala, via alguém comendo um sanduíche e, antes que a pessoa tivesse a oportunidade de lhe oferecer um pedaço, já ia exclamando: Não! Muito obrigado! Bom apetite! Assim, qualquer pessoa que tentava se enxertar numa situação era imediatamente catalogada por ela, de maneira fulminante: – é uma tiete! Mais tarde Gilberto Gil popularizou o termo numa canção e o Brasil inteiro passou a usá-lo.

A Soberana fez a passagem. Saí da loja, atarantado, com o peito arrebentando de dor e fui caminhando, enquanto o frio intenso secava as lágrimas antes que terminassem seu percurso. Nunca mais o seu chamado, nunca mais aquelas reuniões de gente engraçada, inteligente e divertida que definitivamente entendiam a rapidez da passagem e que mudaram a minha vida.

Adeus, minha querida Duse. Obrigado pelo aprendizado. Tenho tentado passá-lo adiante, pois você me ensinou muito sobre a generosidade. Beije Mauro Rasi e Vicente Pereira por mim, diga que sinto saudades de cada um dos nossos momentos e saiba que eu continuo aqui, com a dor de uma criança que foi deixada para trás.

Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelasi133917.jpg