Esqueça o risco-país, os malabarismos de Domingo Cavallo e sua conversa a respeito da troca de títulos da dívida argentina. Deixe de lado o presidente Fernando De la Rúa (‘de la ruina’, para um número crescente de argentinos), quando ele reafirma que não irá desvalorizar o peso nem dolarizar de vez a economia. Não se impressione com os movimentos da Bolsa de Buenos Aires, que nos últimos dias deu para subir sem outra explicação razoável a não ser por pura especulação. Por ora, o melhor indicador da crise argentina está instalado em frente às agências bancárias e caixas automáticos de todo o país. Ali, os argentinos formam filas para sacar os 250 pesos semanais que o governo impôs como teto para as retiradas. O restante ficará no banco e poderá ser gasto apenas via cartões eletrônicos ou cheques. Permanecerá, portanto, dentro do sistema financeiro. O governo De la Rúa fala que esse esquema durará apenas três meses, mas a essa altura a desconfiança é generalizada. Poderão ser retirados mil pesos mensais, equivalentes a R$ 2,5 mil, numa só tacada caso se trate da conta de um assalariado ou aposentado, um recuo anunciado dois dias depois por causa da péssima acolhida que as medidas tiveram. Decisão judicial, válida apenas para a deputada da oposição Alicia Castro, que entrou na Justiça contra o governo, derrubou o teto de 250 pesos. O governo diz que irá recorrer, enquanto outros argentinos se preparam para ir aos tribunais. Em uma clara demonstração de falta de rumo da equipe econômica, o governo argentino também aumentou de US$ 1 mil para US$ 10 mil o valor máximo que os argentinos podem levar ao exterior.

Para o país campeão em desregulamentação que foi a Argentina na era Menem/Cavallo, durante a década de 90, é uma virada de 180 graus. O "cadeado", como o pacote foi batizado fora do governo, foi recebido com um misto de indignação e descrença em eventuais efeitos positivos sobre a economia. É consenso que agravará a recessão de quase quatro anos, com mais desemprego e violência, tudo aquilo que os argentinos não aguentam mais. Por aqui, fez muitos brasileiros se lembrarem do confisco da ex-ministra Zélia e sua equipe. "A decisão do governo argentino foi lamentável. Mas não havia outra saída", afirmou um graduado funcionário do Fundo Monetário Internacional. O FMI reafirmou sua disposição de "colaborar", mas os argentinos que não esperem novos empréstimos. Não tão cedo. A justificativa é que alguns pontos acertados com as autoridades do país deixaram de ser cumpridos.

Economistas de peso, brasileiros e estrangeiros, foram unânimes em afirmar que o pacote, na prática, significa o fim da chamada conversibilidade, o esquema bolado por Cavallo que atrelou o peso ao dólar na base de um para um. Isso porque, além de instituir o limite para os saques, o governo equiparou as taxas de juros das aplicações em dólar e em peso. Diante do stress generalizado, não há razão alguma para mantê-las em peso. E, mais uma vez, Cavallo flertou com a possibilidade de dolarizar. "Se os argentinos escolherem o dólar, a economia dolariza-se", disse ele pouco antes de embarcar para Washington. Foi atrás de "más plata", claro.

Como notou o jornal inglês Financial Times, se é verdade que os argentinos estão proibidos de sacar além de mil pesos por mês, também é verdade que eles poderão transferir seu dinheiro para as instituições que considerem mais sólidas. E aí está outro problemão pela frente. Diante da corrida aos bancos das últimas semanas, muitas instituições financeiras ficaram gravemente fragilizadas. "O sistema financeiro argentino está ferido de morte", definiu o ex-ministro da Economia Roque Fernández. Nos últimos 12 meses, os bancos perderam 17% de seus depósitos. Ferimento desse porte só no período da hiperinflação. Em busca de abrigo, mais de 50 mil contas correntes foram abertas na semana passada. E outros meios de driblar o cadeado de Cavallo deverão surgir. O resultado dessa trama poderá ser um bom negócio, diz o FT. Não para os argentinos, mas para os bancos estrangeiros instalados no país, que já possuem quase metade dos depósitos. Ao contrário dos bancos nacionais, os de fora podem contar com uma injeção de dinheiro de suas matrizes, e assim atraem mais correntistas.

O caos econômico fez os sindicatos voltarem à carga. Marcaram para a quinta-feira 13 uma nova greve geral. Será uma forma de novamente mexer no conturbado contexto político da Argentina de hoje. Como escreveu o escritor argentino Mempo Giardinelli, em artigo no jornal Página12, as coisas só melhorarão quando houver uma faxina entre as lideranças do país – faxina que pode incluir até De la Rúa. "O nosso problema não é só econômico, como querem nos fazer acreditar, mas político e sobretudo moral", afirmou Giardinelli. Não será um novo empréstimo do FMI que resolverá a questão.