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O documentário nasceu com o cinema quando os irmãos Lumière filmaram, em 1895, na França, um trem chegando a uma estação. Com o passar dos anos, no entanto, a ficção ganhou o público. Ser iludido é mais agradável que se expor ao bombardeio de imagens da realidade, mas no caso de um documentarista como Eduardo Coutinho esse raciocínio cai por terra. Seus trabalhos, seja qual for o assunto (a passagem do ano em uma favela carioca ou o cotidiano de um prédio em Copacabana), envolvem o espectador. E rompem justamente os limites nítidos entre o que seria a verdade objetiva de uma entrevista e a mentira de uma situação encenada. A sensação mais comum de quem assiste aos documentários do cineasta é sair do cinema achando que muito do que viu foi inventado. Isso não lhe tira o mérito, aliás, só enriquece o trabalho. Esse sentimento pode ser mais uma vez experimentado ao se assistir "Moscou", a mais recente obra de Coutinho, em cartaz no País a partir da sexta-feira 7, depois de ter a sua estreia mundial no MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova York), que exibe uma retrospectiva de sua obra.

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Trata-se de um filme que se acompanha como quem assiste a um truque de mágica. Já nas primeiras cenas, o diretor anuncia o jogo proposto. Numa mesa de reuniões do Grupo Galpão, em Belo Horizonte, ele apresenta o seu desafio à trupe: encenar no prazo de três semanas fragmentos da peça "As Três Irmãs", do dramaturgo russo Anton Tchecov. Coutinho havia feito o convite para os atores, mas só revelou o nome da peça a ser ensaiada e que viraria documentário no início das filmagens. Em contrapartida, o grupo escolheu o encenador que os dirigiria: Enrique Diaz. O enredo de "As Três Irmãs", passada na Rússia do século XIX, mostra três mulheres que foram obrigadas a viver numa cidade pequena e sonham em voltar para Moscou. Entre a frustração afetiva e os sonhos vagos, elas mostram-se perplexas diante do passado que sempre retorna e do futuro que lhes escapa. É uma das grandes obras-primas do teatro, e tanto Coutinho quanto Diaz e a trupe do Galpão sabiam que não conseguiriam fazer muita coisa em três semanas. "Era um projeto suicida, o tempo não dava nem para decorar todo o texto", diz o diretor.

O que se assiste, então, são exercícios, laboratórios, ensaios e improvisações, num encadeamento de situações documentais que criam, paradoxalmente, um universo de ilusões. Numa cena em que as irmãs lembram da infância, as atrizes acabam incorporando reminiscências pessoais: uma delas até canta o hino de sua cidade natal, Divinópolis, no interior de Minas Gerais. Em outra passagem, um casal que redescobre o amor interpreta em dueto a música "Como Vai Você?", sucesso na voz de Roberto Carlos, se iluminando com palitos de fósforos. Apesar dessas passagens mágicas, Coutinho havia terminado as filmagens achando que o material gravado não se mantinha em pé: "Pela primeira vez eu senti que não tinha controle da situação. Me perguntava: o que estou fazendo aqui?" Quem o animou foi João Moreira Salles, produtor do filme e também um renovador do gênero documental com "Santiago". "Terminei com 4h40 de material. Foi ele quem me convenceu que existia um caminho." Depois de cinco meses de montagem, chegou-se a 1h20. O que é verdade e o que é mentira? Coutinho responde: "Muitas vezes uma história falsa é mais verdadeira. Uso o documentário para fazer as pessoas acreditarem no que não deveriam acreditar. Isso me encanta."

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