O subprocurador Miguel Guskow, da cúpula do Ministério Público do Distrito Federal, é um evangélico devoto. Organizador de cultos, conheceu a funcionária pública Isabel Pacheco em um curso de teologia. Mas virou sócio da moça em negócios bem terrenos. Em janeiro, Guskow tornou-se alvo de uma sindicância aberta pelo procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, por envolvimento em falcatruas na negociação de títulos públicos. A investigação claudicava, mas, em maio, a ex-sócia Isabel resolveu procurar as autoridades para contar assustadores detalhes das atividades de Guskow. A denúncia resultou num documento de 200 páginas da Polícia Federal e no relatório final da Comissão de Inquérito do MP, ao qual ISTOÉ teve acesso. O dossiê-bomba, que deve ser votado pelo Conselho Superior do MP nesta semana, é assinado por quatro procuradores, que encomendam a demissão de Guskow e de outro procurador, Antônio Carlos Fonseca. Além de perder o emprego, Guskow pode ser indiciado por formação de quadrilha e corrupção passiva num inquérito criminal no STJ.

Guskow e Fonseca aparecem envolvidos na disputa entre TBA e IOS, duas das maiores empresas de informática, que brigam pelas contas do governo federal. A IOS abriu processo na Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça contra a TBA por prática de concorrência desleal. Uma história com denúncias de chantagens e gravações que resultaram numa reportagem de ISTOÉ em abril de 1998. Em seu depoimento, Isabel revelou que Guskow atuou no caso fazendo jogo duplo. Primeiro defendeu a IOS e, depois, mudou de lado. A Comissão de Inquérito explica a aparente contradição: Fonseca, que atuava ilegalmente como advogado da TBA, colaborou para que Guskow beneficiasse a empresa. Isabel contou que foi chamada por Guskow, afirmando ter uma boa notícia sobre a TBA e que precisaria de um negociador. Esse intermediário veio a ser o lobista João Carlos Bruno, suposto assessor do senador Leomar Quintanilha (PPB-TO). Isabel contou que ela, Guskow e outros receberiam US$ 60 milhões de comissão: US$ 48 milhões para o procurador e os outros US$ 12 milhões para ela e o lobista. “A solução seria o dr. Miguel dar o ganho de causa para a TBA.” Isabel chegou a receber cerca de US$ 20 mil de Guskow, de Bruno e da própria mulher de Guskow. “Depois fui isolada.”

A Comissão de Inquérito analisou documentos apreendidos no gabinete de Guskow, em sua residência e na de Bruno. Quebrado o sigilo telefônico do procurador, verificou-se mais de 100 ligações para Isabel, Bruno e para a IOS.

Títulos-fantasma – O caso que deu origem ao inquérito parece uma novela policial, envolvendo agentes internacionais e títulos públicos brasileiros. Começou no ano passado, quando a Polícia dos EUA prendeu Robert Whitehead, dono da empresa The Currency Group. Um trambiqueiro que pretendia negociar Notas do Tesouro Nacional (NTNs) das séries A, D e R-2. O estelionatário contou ao procurador de Nova York que seu contato brasileiro era o empresário Taniel Marcolino, dono da Rockman Investiments. Marcolino, por sua vez, revelou que no Brasil era “auxiliado neste projeto por Miguel Guskow”. O procurador, descobriu-se depois, chegou a assinar cartas atestando a competência e seriedade de Whitehead e de Marcolino. O Banco Central, informado pelos EUA, enviou um ofício ao MP alertando que a venda de NTNs serviria para encobrir “lavagem de dinheiro”. Novamente o depoimento de Isabel Pacheco é revelador. Ela afirma que em 1998 apareceu “um contato que queria comprar títulos, NTNs, precatórios e títulos antigos” e que Guskow pediu-lhe que localizasse vendedores destes papéis. Isabel conta que Guskow escreveu, de próprio punho, o seguinte bilhete: “Bruno para amanhã, o negócio foi fechado com comissões de R$ 12 milhões, em nome de Etelmar (Etelmar Antônio Brandão Loureiro, advogado e lobista que atuou na máfia dos títulos públicos). Peço que você fique de olho para que não fiquemos de fora.”

Na documentação da PF, são evidentes as ligações de Guskow com Whitehead e Marcolino. Além de correspondências entre os três, existem 14 documentos com promessas de disponibilização de NTNs. Os valores são estarrecedores. Guskow e sua turma se dispunham a vender US$ 30 bilhões em títulos. Eduardo Nakao, chefe da área de mercado de títulos do BC, disse que fora as NTNs da série D, “as demais eram absolutamente inexistentes”. A PF apreendeu um papel endereçado a Marcolino com a seguinte observação: “Segue anexo o contrato garantindo o comissionamento (…) do dr Miguel e outros.” O relatório do MP qualifica Guskow como “parceiro e coadjuvante de um estelionato, verdadeiro golpe financeiro internacional, o uso indevido do prestígio do cargo, a exposição a risco das políticas públicas nacionais de finanças internas e externas”.

Lobby e sociedade – Outro conluio denunciado por Isabel Pacheco foi a ligação de Guskow com empresas de combustíveis. No ano passado, ela conta que recebeu de Bruno e de Guskow R$ 5 mil para a compra e venda de álcool. Cheques, comprovantes de depósitos e notas promissórias indicam a sociedade entre o subprocurador e o lobista. O início da investigação foi um e-mail da Titan Distribuidora de Petróleo Ltda., de propriedade de Joaquim Caldas, enviado em agosto do ano passado à liderança do PPB no Senado, na época ocupada por Leomar Quintanilha, onde trabalhava o versátil Bruno. Na mensagem, os distribuidores qualificavam como “insana” uma portaria da Agência Nacional de Petróleo, que apertou o controle sobre os distribuidores, e uma lei do Estado do Mato Grosso resultando numa tributação extra sobre os combustíveis. Muito diligente, Guskow questionou a legalidade da portaria e também mandou que o procurador-geral do Mato Grosso apurasse tal “conduta danosa”. O próprio Quintanilha entrou no lobby, defendendo negócios para a Titan na Petrobras. Na casa do lobista, a polícia encontrou mais de R$ 700 mil em cheques – um deles, de R$ 350 mil, do dono da Titan –, além de US$ 60 mil em espécie. Também recolheu uma nota promissória da Oil Petro Brasileira no valor de R$ 1,1 milhão, recibos de depósitos em favor de empresas de combustíveis e um depósito de R$ 10 mil para Guskow. Na casa do procurador, a PF apreendeu US$ 16 mil, também em verdinhas. Nestas apreensões, a sociedade entre Guskow e Bruno ficou explícita: os dólares dos dois pertenciam à mesma sequência numérica. Mas o MP cochilou no inquérito criminal que está no STJ. O ministro-relator Ruy Rosado determinou a devolução dos dólares e outras provas. Talvez o procurador siga o conselho que ele mesmo deu a Isabel Pacheco para ocultar dinheiro sujo: “Dividi-lo em várias caixas, colocá-las em vários buracos, para não correr o risco de ninguém achar.”

Procurado pela reportagem, Guskow disse que tudo “é uma grande armação” e que não se pronunciaria sobre as denúncias porque desconhecia a conclusão do inquérito. Bruno afirmou, sem mencionar nomes, que o processo foi “criado por uma quadrilha”. Disse ainda que não tinha negócios, mas é amigo de Guskow. Já o senador Quintanilha negou que fosse amigo do lobista, mas confirmou que deu um crachá para que Bruno circulasse livremente no Congresso.