No banco dos réus e nas crônicas sociais, na literatura de grande apelo e na música popular, na ebulição da imprensa escrita e na maravilha do rádio, o encantamento pelos sentimentos e comportamentos passionais marcou o Rio de Janeiro ao longo da década de 1940 um até romântico e bem mais delicado Rio de Janeiro fazia-se ali. O amor, se era para ser amor, tinha de doer. E então os protagonistas desse amor se refestelavam na paixão e na traição, no ciúme e na “dor de cotovelo”, nos crimes de honra e nos debates públicos, no sofrimento e na música, muita música. É nesse cenário, e no turbilhão de seu recorte musical, que o casal Dalva de Oliveira e Herivelto Martins vai fazer muito sucesso lavando em público, sob a forma de geniais composições, a baixaria de sua roupa suja conjugal.

Ela, uma garganta de ouro: a interpretação feminina no Brasil se divide em antes de Dalva e depois de Dalva (a alucinante divisão rítmica de Elis Regina já é consequência disso). Ele, pinho empunhado (pinho era o nome carinhoso que os desiludidos davam ao violão), nos legaria versos imbatíveis e que curiosamente às vezes até tateavam um outro caminho que não o do passional: “Trazer uma aflição dentro do peito/é dar vida a um defeito/que se extingue com a razão.” Pois bem, é também esse cenário, e enredo, que a Rede Globo colocará no ar no início de janeiro com o folhetim “Dalva e Herivelto, Uma canção de amor”. A marca da série será o compromisso com o factual.

A briga entre eles o Brasil inteiro acompanhou como quem torce num jogo de futebol naqueles tempos, embandeirados Fla-Flu. Eles chegaram juntos, e apaixonados, ao sucesso, ainda na década de 1930, e se separaram durante uma turnê à Venezuela em 1949. Aí, começaram as farpas. Em parceria com Marino Pinto, ele lançou “Cabelos Brancos”: “Não falem dessa mulher perto de mim/não falem pra não lembrar minha dor”. Ela retrucou: “Todo egoísmo veio de nós dois/ destruímos hoje o que poderia ser depois.” Como o marido compunha e a mulher não, outros homens a socorreram, compondo, nessa corrida pelo aplauso psicanaliticamente, cada parte recebendo o aplauso como uma espécie de “você é que está certa” ou “você é que tem razão” (a música acima referida, por exemplo, foi feita por J. Piedade e Oswaldo Martins).

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Gravação Denis Carvalho dirige cena com Fábio Assunção e Adriana Esteves: eles interpretam Herivelto e Dalva

Nos papéis-títuloda minissérie estarão a atriz Adriana Esteves e o ator Fábio Assunção, enquanto Maria Fernanda Cândido interpreta Lurdes, a mulher que sucedeu Dalva na vida de Herivelto. Para Adriana, a cantora “tinha enorme capacidade de amar”. Fábio destaca o espírito de liderança do compositor: “Tento chegar perto dele pela humanidade.” Herivelto criou pelo menos 40 sucessos populares. Dalva foi uma intérprete reconhecida por sua emoção. Fala um dos filhos do casal, Pery Ribeiro, 12 anos quando da separação: “É ótimo que se
resgate a trajetória dos dois.

O roteiro é baseado na biografia que escrevi.” Autora da minissérie, Maria Adelaide Amaral não confirma essa informação: “A obra não se baseia em nenhum livro, mas em documentos e reportagens daquele tempo.” Na empreitada, ela tem a seu lado Yaçanã Martins, filha de outro casamento de Herivelto e que diz ter-se mantido isenta. Isso imprime à série um tom realista. E nada melhor, aliás, do que a isenção, porque nem o Rio de Janeiro nem o País são os mesmos. A honra de cada cônjuge, hoje, começa e termina em si a não mais justificar a passionalidade.

Quanto ao turbilhão da Cidade Maravilhosa, ele é outro nem sombra de paixão. “Não tomei partido. Fiquei triste pelo final melancólico da Dalva”, diz o diretor Denis Carvalho. Ela morreu aos 56 anos. A última tentativa de reconciliação foi feita pelo pesquisador Ricardo Cravo Albin, com a diva agonizante. Herivelto não encarou: “A vida às vezes cimenta sentimentos nos quais não se deve mexer.”

Cantando após a tumultuada separação

Herivelto
“Não tem mais jeito/mulher quando perde/ a vergonha e o respeito/não tem mais jeito” (“Não Tem Mais Jeito”, Herivelto Martins e Benedito Lacerda)

Dalva
“Sei que é doloroso um palhaço/se afastar do palco por alguém/ sei que choras, palhaço,/por alguém que não te ama” (“Palhaço”, Nelson Cavaquinho e Oswaldo Martins)