"No dia seguinte, ninguém morreu.” É com essa frase de puro absurdo, mas da mais perfeita síntese possível, que o escritor português José Saramago começa e termina seu mais novo romance, As intermitências da morte (Companhia das Letras, 207 págs.,
R$ 35). Um romance que leva o autor – ganhador do Prêmio Nobel, até hoje surpreso por ter sido agraciado com a honra máxima da literatura internacional – de volta ao seu melhor estilo. Ácido, sarcástico, mas irresistivelmente lírico em seu sempre ostensivo amargor, o Saramago que assina este livro é a prova viva (embora “viva”, no contexto, soe um tanto impertinente) de que a crítica social e política convive perfeitamente com o ideal estético.

Porque não é fácil manter o interesse do leitor ao longo de mais de 200 páginas partindo da situação estapafúrdia de uma cidade em que, por razões não explicadas, a partir de uma bela manhã ninguém mais morre de causa alguma. Os problemas que daí advêm, do debate religioso ao orçamento da previdência, do tráfico de moribundos para além das fronteiras à administração dos seguros de vida, tudo é tratado com fina ironia, mas se esgota em poucas páginas, restando ao leitor a dúvida do que virá a seguir. O que vem é uma nova versão da morte, que adota o sistema de entrega em domicílio até o dia em que este falha – e aí é uma morte transmutada e surpreendente que surge da narrativa, dando ao ato final da obra seu mais agridoce sabor.