Irritado com a crise ética, o rostomais popular da monarquia brasileiraataca políticos e diz que honestomesmo era dom Pedro II, seu trisavô

Nas veias do príncipe dom João de Orleans e Bragança corre sangue azul, mas sua indignação com os rumos do País é igual a de um plebeu. Oscila entre a profunda decepção e a esperança. Tataraneto de dom Pedro II e bisneto da princesa Isabel, dom João de Orleans e Bragança, 51 anos, aprendeu com o pai, o também príncipe dom João Maria de Orleans e Bragança, a amar o Brasil sobre todas as coisas. Falecido este ano, dom João Maria nasceu no exílio na França e quando pôde regressar ao Brasil quis vestir a farda das Forças Armadas como sinal de devotado patriotismo. Dom João não se furta a cumprir uma agenda de solenidades que exijam sua presença, como visitar, na terça-feira 15, ao lado de diplomatas brasileiros, a Igreja da Lapa, na cidade do Porto, em Portugal. É lá que está uma relíquia, o coração de dom Pedro I. O imperador está enterrado no Brasil, mas seu coração ficou no Porto, cidade que o acolheu quando retornou a Portugal. Da cidade do Porto, dom João falou longamente ao telefone a IstoÉ, revelando um engajamento surpreendente para quem o via apenas como bom fotógrafo e surfista bissexto. Mesmo chicoteando políticos e reverberando princípios éticos segundo ele herdados de dom Pedro II, o príncipe não esquece o ofício de fotógrafo. Falou brevemente da mostra de 22 fotos que inaugura no Rio de Janeiro ainda este mês. São registros em preto-e-branco do Siwa, um dos oásis mais famosos do Egito, onde ele esteve em janeiro deste ano. Apresentou a sua família a terra de sua mãe, a princesa egípcia dona Fátima Chirine.

ISTOÉ – De certa forma o Egito lembra o Brasil, não?
Dom João de Orleans

Sim. É um país fascinante, muito alegre. Eu ainda tenho família lá, primos e tias. A população é muito cordial, hospitaleira, fala com você, mesmo que não o conheça. Esta é uma característica muito nossa.

ISTOÉ – São países também similares na pobreza?
Dom João de Orleans

Em todos os lugares em que vou, pergunto sobre a realidade política local. No Egito, eu perguntava se havia democracia. A elite, que é muito dependente do poder, dizia que sim. Mas você pode criticar o presidente? Não. Então que democracia é essa? Daí eu contava com muito orgulho sobre o nosso processo de democratização. Nós tivemos 21 anos de regime militar e depois todas as lideranças que voltaram são governadores, deputados e houve até presidente. Contava com muito orgulho que temos liberdade total de expressão, liberdade política. A nossa grande diferença hoje é a democracia.

ISTOÉ – Nesta semana se comemorou a proclamação da República no Brasil. Há 116 anos, começava o exílio de dom Pedro II.
Dom João de Orleans

A nossa família viveu o maior exílio político da história brasileira, de 33 anos. Foi um exílio imposto por um governo militar, não foi um exílio imposto pelo povo. Na época do império, ainda com dom Pedro II, havia total liberdade de imprensa, de expressão e política. Poucas pessoas se dão conta disso.

ISTOÉ – No exílio, dom Pedro II jamais aceitou ajuda do governo republicano?
Dom João de Orleans

O governo militar brasileiro sabia da dedicação de dom Pedro ao Brasil e que ele não tinha bens de espécie alguma. Eu sempre achei que a função do homem público não é ficar rico, mas se dedicar ao bem público. E dom Pedro II talvez tenha sido o brasileiro que mais defendeu o dinheiro público. No exílio recebeu uma carta do governo brasileiro, dizendo que ele passaria a ter direito a uma pensão anual. Ele respondeu: “Agradeço ao novo governo do meu país, mas não posso receber um dinheiro do Brasil sem estar servindo à nação brasileira. E desejo sucesso ao novo governo de meu país.” Até hoje, as pessoas me perguntam: “Você tem orgulho desta atitude?” Não, eu não tenho orgulho. Ele fez o que qualquer homem público deve fazer. Não devemos sentir orgulho de agir corretamente. Temos que ter vergonha de agir incorretamente. Dom Pedro queria o bem do Brasil. Gastos supérfluos, nas palavras dele, significavam furto à Nação. Ele era um dos maiores controladores de gastos públicos. Alguns embaixadores que o visitavam perguntavam como ele, imperador de um país tão grande, tão rico, vivia num palácio tão pequeno e humilde. Ele dizia que o imperador não precisa ter palácio grande e todos os bens devem ser revertidos para a nação.

ISTOÉ – A que o sr. atribui este espírito?
Dom João de Orleans

A ter sido educado a amar e, mais que amar, respeitar um país. No exílio, ele pediu para ser enterrado com um travesseiro com terra brasileira. O professor Darcy Ribeiro (1922-1997) me disse que ele foi um dos maiores progressistas de seu tempo. Que já tinha idéias de esquerda. Ele iria implantar a reforma agrária no País, num grande projeto do engenheiro André Rebouças. Tinha um projeto de reforma agrária para viabilizar a inserção social de toda a população negra. Ele sempre foi contra a escravidão. Ele dava o exemplo, pagava a alforria dos escravos e salário para os escravos. Quando a princesa Isabel libertou os escravos, boa parte da elite não perdoou, porque queria ser indenizada. Foi o mote para os republicanos chegarem ao poder.

ISTOÉ – O exemplo ético de dom Pedro II parece que não resistiu ao tempo.
Dom João de Orleans

O Brasil tem que vir em primeiro lugar em tudo. Corrupção não é novidade. Desde que o mundo é mundo existe corrupção, roubo, má administração. Não é um privilégio do Brasil. O que me preocupa é a tolerância da população a isso. Eu queria ver como seria o que está acontecendo se a capital fosse no Rio ou em São Paulo. Quantos milhares de pessoas estariam na rua? Brasília, por ser uma cidade dependente do serviço público, não contribui para a ocorrência de manifestação popular. Todo o entorno de Brasília já não ajuda muito a cidadania e a manifestação democrática. Há sem dúvida uma decepção com a classe política. Só tem uma coisa que pode mudar isso. Fazer leis. Acabar com prisão especial para políticos e para quem tem nível superior. Por que isso, por que esse privilégio? Você tem que acabar com tantos casos de crimes que no meio do processo já caducam, como o que está acontecendo com Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo. Acabar com os ritos processuais tão lentos em que as pessoas ficam impunes. Acabar com o número enorme de protelamentos. Isso vai mudar brutalmente o quadro, vai atrair mais idealistas para a vida pública do que fazedores de negócios.

ISTOÉ – Por enquanto há mais fazedores de negócios?
Dom João de Orleans

Os brasileiros não são nem pior, nem melhor que as outras pessoas. Precisamos lutar para ter esses mecanismos para que a gente possa punir, e punindo exemplarmente vai haver mais credibilidade na vida pública, atrair gente mais íntegra e mais idealista, gente que põe o Brasil em primeiro lugar. Não acho que a gente deva desistir. A gente tem a democracia e todas as liberdades para isso. Agora tem que haver pressão e tem que haver uma reforma que já começa a ser discutida, que é a fidelidade partidária, do financiamento público de campanha. É incrível ver políticos dizerem que o caixa 2 é de uso comum. Isso é passível de nosso total repúdio, deve ser punido exemplarmente, doa a quem doer. Você vê alguns deputados com seus cabelos pintados e as unhas esmaltadas querendo parecer uma coisa que eles não são. Ou melhor, querendo não parecer o que eles verdadeiramente são. O que está acontecendo com as leis em relação à vida pública no Brasil é a mesma coisa que prender cachorro com lingüiça. Em Brasília, se prende cachorro com lingüiça.

ISTOÉ – Em outros países é diferente?
Dom João de Orleans

Nos Estados Unidos, é proibido mais de uma pessoa da mesma família ser proprietária de rádio e televisão. No Nordeste, você
tem um neocoronelismo. Famílias detentoras de poder há séculos, que brigam entre si e o povo fica olhando. São famílias donas de rádio, televisão e jornal. Isso não é democracia.

ISTOÉ – E os políticos só pensam em seus interesses?
Dom João de Orleans

Há leis que não se discutem hoje por interesses partidários, leis importantíssimas para o Brasil. Leis como da Previdência, como da responsabilidade fiscal. Quantos milhões de brasileiros, principalmente os menos favorecidos, não foram prejudicados porque, por interesse partidário, se votou contra, depois se votou a favor. Como há uma lei de responsabilidade fiscal, deveria haver também uma lei de responsabilidade política. Existem vários países no mundo que têm uma série de mecanismos para fiscalizar o Legislativo. Hoje se vota num político com medo, medo de ele aumentar o próprio salário. A saúde da democracia do Brasil me preocupa.

ISTOÉ – As pessoas estão desencantadas com os políticos?
Dom João de Orleans

Há estudos recentes na América Latina em que a maioria dos entrevistados, em todas as classes, prefere uma economia indo bem num regime não tão democrático do que uma economia indo mal num regime democrático. Isso é um exemplo da perda da esperança na democracia. Tem que ter então mecanismos de controle do poder, de cobrança. Um dos melhores mecanismos que o Brasil conseguiu na Constituição de 1988 foi o Ministério Público, um dos maiores avanços que o Brasil teve nos últimos 100 anos. Tem então que ter uns 20 mecanismos iguais ao Ministério Público. O poder tem que ser controlado, não tem jeito. Com controle, todo mundo vai se inibir antes de sair da linha.

ISTOÉ – O sr. está muito decepcionado?
Dom João de Orleans

Estou preocupado. Até o silêncio dos intelectuais me preocupa. Muitos deles não colocam o Brasil em primeiro lugar. Estão demonizando o PT. Está errado. O PT foi importantíssimo na redemocratização do Brasil, foi importantíssimo o Partido dos Trabalhadores chegar ao poder no Brasil, isso é exemplo para o mundo inteiro. E com eleições totalmente transparentes. Mas na hora em que estiverem ocorrendo erros e desvios, quem colocou o partido no poder tem que ser o primeiro a puxar a orelha, porque não é o PT em primeiro lugar, é o Brasil em primeiro lugar.

ISTOÉ – Faltam exemplos como dom Pedro II?
Dom João de Orleans

Já fui parado várias vezes na rua por guarda no trânsito, falando no celular. Ele vê meu nome e diz que não vai me multar. Eu digo que tem que me multar; como cidadão devo ser multado, e daí conto uma história. Que dom Pedro II ia ser multado numa carruagem na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. O seu cocheiro estava se arvorando em autoridade, quando ele chegou e falou: “Eu faço questão que me multe, porque sou o chefe supremo desta nação e, se não der o exemplo, quem mais vai dar? O chefe supremo, que é o presidente Lula, foi eleito por mais de 52 milhões, é o presidente de todos os brasileiros. Teria que estar mais atento com o que está acontecendo.

ISTOÉ – O presidente foi traído?
Dom João de Orleans

Quando o presidente diz que é uma elite que quer derrubá-lo, ele está certo, é a elite do PT que fez isso. E digo mais: muitos deles têm sorte porque, se fosse em Cuba, eles já teriam ido para o paredão. Quando ele diz que foi traído, está certo. Mas as CPIs, com o apoio do próprio PT, estão indo bem. O Delcídio Amaral, que é do PT (presidente da CPI dos Correios) está agindo com equilíbrio. Só é uma pena que, enquanto isso acontece, o País está parado, Deus sabe até quando. E em seis meses começa a disputa pelas eleições e os 180 milhões de brasileiros com a pior distribuição de renda do mundo não podem ficar esperando.

ISTOÉ – O sr. é parlamentarista?
Dom João de Orleans

Continuo parlamentarista. Já me perguntaram se sou monarquista. Antes de ser monarquista, sou parlamentarista. A monarquia, onde ela existe, dá lastro e equilíbrio ao sistema parlamentarista.

ISTOÉ – O sr. acha que um dia seremos parlamentaristas?
Dom João de Orleans

Continuo achando que é o melhor sistema, mas acredito que deve haver uma transição para que a população brasileira entenda o que é parlamentarismo. A maior parte das pessoas não sabe. Acho que é um sistema muito mais eficaz, mais justo, menos traumático nas crises, mas acho que o Brasil ainda não está preparado. Ao mesmo tempo, as instituições têm mostrado vigor e solidez. O Brasil já é um país onde as instituições são sólidas

ISTOÉ – A pergunta é inevitável. O sr. quer ser político?
Dom João de Orleans

Não posso. Minha família não deve fazer parte de partidos políticos, nem representar ideologias.