Ex-presidente da UNE, Ruy Cezar promove festival de artistas independentes e defende que o País seja o eixo da união cultural entre as nações

Ruy Cezar Silva nasceu no interior da Bahia em 1960. Mas foi em 1977, aos 17 anos, que andou pela primeira vez de ônibus e viu uma peça de teatro. Ruy seguia para Salvador onde prestou vestibular para Comunicação na UFBA. Logo entrou para o movimento estudantil e ajudou na rearticulação da União Nacional dos Estudantes (UNE), na época fechada pela ditadura militar. Em 1979, na primeira eleição direta para presidente da entidade, venceu a chapa do então estudante e hoje ministro Ciro Gomes (PPS). Como muitos que chegaram ao poder no governo Lula, ele foi preso, torturado e, aos 22 anos, já era uma notável liderança política de esquerda. Mas o rapaz, inquieto e visionário, avesso à política partidária, queria mesmo era ser ator. Ao terminar o mandato na UNE, em 1981, resolveu, sob protestos dos companheiros de
militância, sumir do cenário para se dedicar à cultura e à educação.
Por mais de dez anos, rodou pelo mundo trabalhando na formação
de uma rede internacional de intercâmbio cultural. Hoje, é dono
de uma conceituada escola construtivista e organizador de um
festival anual com artistas independentes do mundo, o Mercado
Cultural. Ruy realizou ainda o grande sonho de tornar-se ator de
teatro. Sem partido, em silêncio e longe de Brasília, ele faz muita
política e tem contribuído para o desenvolvimento sociocultural
do País, ao mostrar para produtores mundiais o que é
produzido aqui e ignorado pelos barões da cultura brasileira.

ISTOÉ – O que é o Mercado Cultural, que já se realiza há quatro anos em Salvador?
Ruy Cezar Silva

 A idéia foi fazer um ponto de encontro entre todas
as redes culturais alternativas fora da indústria. O que é o mangue
beat? O que é o maracatu, o afoxé, o samba do coco? Ou seja, o
agente ou diretor de um festival não precisa mais viajar toda a América Latina para encontrar esse material. Ele vem aqui e assiste de 13
a 15 espetáculos ao dia num curto espaço de tempo. Em uma semana, eles fazem centenas de contatos, levam material para preparar um
ano de turnês nas suas regiões. Recebemos 800 CDs por ano, a maioria de fora do Brasil, de artistas que querem participar do evento. O fenômeno foi a multiplicação da presença de especialistas de um
ano para o outro. No primeiro, tínhamos cerca de 120 produtores culturais, no segundo 250, no terceiro 800, e agora mais de mil.

ISTOÉ – A divulgação é restrita. Isso é proposital?
Ruy Cezar Silva

O festival é divulgado boca a boca ou internet a internet, por revistas e sites especializados em música. A grande imprensa
não é o foco. Nosso foco é promover e dar visibilidade a trabalhos
de alta qualidade que estão fora da indústria. Os grupos que participam do Mercado Cultural têm uma trajetória, uma história, e não são
um fenômeno momentâneo, passageiro. Isso não nos interessa. Se estivéssemos apresentando 15 grandes estrelas da música mundial, nenhuma viria a Salvador. Elas vêm em busca do novo, de descobrir
o que ainda não foi visto. Buscamos o que está faltando, o que
foi excluído do mercado, e não o que já existe em excesso.

ISTOÉ – E o que está faltando nas políticas culturais do Brasil?
Ruy Cezar Silva

Por exemplo, nós temos muita identificação com a África. Toda a informação Brasil–África flui obrigatoriamente pela Europa e Estados Unidos, sobretudo via Londres. Tudo é filtrado por lá e a gente não tem escolha. Quem julga a estética, o valor e a qualidade técnica dessa obra? O Mercado muda esse padrão e, com isso, os países pobres (em termos econômicos não culturais) encontram outra referência. Com esse trabalho que desenvolvemos, estamos criando um padrão e valorizando, de fato, a nossa obra. Atualmente, nossos artistas imploram para mostrar um trabalho no Exterior e, às vezes, até pagam para isso.

ISTOÉ – Mas há muitos artistas brasileiros que fazem sucesso no Exterior e ninguém os conhece aqui.
Ruy Cezar Silva

Essa é uma grande discussão. A rede Brasil pretende fomentar o mercado interno e difundir as obras em todo o mercado nacional. O artista pode não vender 200, 300 mil CDs, mas ele pode
ter um público cativo em alguns Estados. Ele vende 50 mil CDs, o
que é significativo se esse artista não estiver isolado na sua região.
Para integrá-lo, precisamos de uma política específica de estratégias
a curto prazo. Se você não desenvolve o mercado interno e se volta apenas para o externo, você mata a galinha dos ovos de ouro. Para disputar o mercado local não temos muitos instrumentos. Não existem catálogos amplos, não tem mídia para fazer chegar o novo, o que
está fora da indústria ao grande público. Agora, não adianta estimular
só a divulgação. É preciso haver investimentos em distribuição. Na França, foi feito um trabalho sistemático. O país consumia apenas
2% de seus artistas, e esse porcentual pulou para 12%. Hoje
tem-se que trabalhar primeiro o mercado interno de todas as
formas, principalmente a produção alternativa, independente.

ISTOÉ – Há 11 anos, você criou uma rede de intercâmbio cultural, que possibilitou a realização do Mercado. Como ela funciona?
Ruy Cezar Silva

A rede tem 250 escritórios em diversos países, com 400 membros. Começamos a trabalhar com outras redes. Aos poucos descobrimos as européias e as americanas. Embora as redes americanas não se comuniquem entre si, elas já estão negociando conosco. E
o Brasil começou a ganhar um espaço privilegiado, tanto por ser um
país consumidor e agregador da obra produzida na América Latina,
como por estar facilitando a negociação entre as redes dentro de
cada país-membro. Hoje temos grande influência na Ásia, a partir
de Hong Kong, que é a sede das redes asiáticas. No Oriente Médio, temos um projeto na Jordânia, um festival de afirmação da arte
do Oriente, com uma rede de 11 países daquela região, entre eles
Egito, Síria, Palestina. Há um grande olhar sobre o Brasil agora.

ISTOÉ – O Brasil é a bola da vez na cultura mundial?
Ruy Cezar Silva

Eu acho que sim. Há alguns anos, fui a uma conferência
em Estocolmo e em reuniões com o Banco Mundial, e essa discussão sobre cultura levou à idéia de se criar um grande Fórum Cultural
Mundial. O primeiro, que vai definir programas de investimento,
sistemas de monitoração, promoção, estratégias de desenvolvimento
de mercado para dar visibilidade ao que não está sendo visto, acontecerá em São Paulo, em janeiro de 2004. Tinham várias cidades candidatas, como Nova York, Paris, Buenos Aires, e todos os países
não centrais foram fechando com o Brasil e também recolhendo tecnologias para montar suas redes. Estamos começando a formar
os comitês para o fórum. Vejo que existe uma angústia no ambiente cultural nacional. Ninguém está feliz, nem os que vendem bem.

ISTOÉ – A globalização, nesse aspecto, é positiva. Sem ela não haveria intercâmbio entre produtores, artistas e consumidores.
Ruy Cezar Silva

Temos que nos aproveitar disso. São coisas muito simples que precisam ser feitas para usar a cultura para o desenvolvimento econômico. O Nordeste do Brasil tem potencial turístico semelhante
ao do Caribe. No entanto, o México recebe muito mais turistas do
que todo o Brasil. O que falta? Não temos um catálogo da região,
que centralize tudo como Madrid, por exemplo. As pessoas vão para
lá consumir cultura, assim como em Barcelona. O que pode fomentar
o turismo numa cidade do Nordeste, além das praias? Se você fizer
um festival de violeiros das cidades do interior, eu divulgo isso no
mundo inteiro, coloco na mídia internacional e vou atrair muita gente
para assistir a esse festival. Já se você chamar o Chiclete com
Banana para fazer um show, eu não tenho como divulgar isso.

ISTOÉ – Por que eles estão massificados pela indústria e pela mídia?
Ruy Cezar Silva

Eu não sou contra a indústria, que gera emprego e traz mobilidade social. Mas as políticas públicas não podem se dedicar aos
que são fenômenos mercadológicos. É o caso do É o Tchan, que se apropriou do samba de roda do Recôncavo à moda do mercado. Isso acontece, mas quando a força da indústria está no auge, o Estado
tem que cuidar da base, da renovação. O que ocorreu em Salvador, por exemplo, foi o contrário. Por falta de políticas públicas, desmancharam
-se todos os grupos instrumentais com trabalho autoral, e esses músicos maravilhosos passaram a integrar bandas de axé e se vestiram com chapeuzinho de Papai Noel para tocar no Faustão com a Daniela
Mercury. O Estado tem que trabalhar no desenvolvimento cultural.

ISTOÉ – Mas como o Estado, que tem tantas urgências e orçamento curto, pode investir pesado neste setor?
Ruy Cezar Silva

As leis de incentivo são renúncia fiscal, e isso é feito com dinheiro público. Há uma supervalorização do papel das empresas na questão da cultura. As marcas quase invadem o espaço do artista. São banners, néons nos palcos, agradecimentos a patrocinadores. Sabe quanto ganha de mídia espontânea o patrocinador de um grupo de dança como o Corpo? Dez vezes mais do que investiu! E mais do que isso, a empresa recebe valores agregados inestimáveis, uma imagem de comprometimento com a cultura, com a comunidade. O governo precisa disciplinar isso porque tudo é feito com dinheiro público, e esses “recursos” não podem ficar apenas nas mãos dos departamentos de marketing das empresas. Precisamos de estratégias a longo prazo.

ISTOÉ – O Sebrae fez uma pesquisa e constatou que o melhor produto que o Brasil tem para exportar é a cultura nacional.
Ruy Cezar Silva

O Sebrae contratou o sociólogo italiano Domenico de
Masi (autor de O ócio criativo) para fazer a pesquisa, na busca do
que poderia definir a marca do Brasil, o que seria o carro-chefe da exportação. Não deu outra: a diversidade cultural brasileira, a nossa música, a estética daqui são as coisas mais bem recebidas lá fora.
Mas como fazer para organizar isso? Durante muito tempo fizemos um anti-serviço. Mandamos mulata, futebol, folclore sem um conceito.
E o Brasil é um caldeirão criativo impressionante. As pessoas tiram
do nada para criar. Mas muitos artistas estão sem possibilidade de organização. Isso envolve capacitação, infra-estrutura, promoção, distribuição, difusão, planejamento, parcerias. O Brasil tem
uma produção altamente competitiva no mercado mundial.

ISTOÉ – Falta mais afirmação para a identidade cultural brasileira? Algo como: ?Chega de imitar os EUA e a Europa…?
Ruy Cezar Silva

Os EUA tem atitude e cultura de vencedores. São muito competitivos, a especialização é a herança da sociedade industrial.
Mas hoje, na era das comunicações, as qualidades mais valorizadas
são outras, como múltipla informação, pluralidade. Isso também em
nível empresarial. E quem tem essa peculiaridade? A cultura dos EUA
tem muita qualidade, mas eles se consideram superiores e têm o
hábito de se sobrepor. Acreditam que são tão bons e ajudam tanto
que os outros devem se submeter. No meu entender, esse é o
grande momento brasileiro. Que lugar do mundo pode fazer uma convocatória de união cultural? A Europa com suas restrições à imigração? Os EUA e a paranóia contra a diversidade étnica e
religiosa? O Brasil é o grande país agregador. Mas não queremos
agir só, não vamos querer nos tornar hegemônicos. A nossa
proposta é associativa com culturas plurais, sem exclusão.

ISTOÉ – Os brasileiros ainda não perceberam esse valor agregador?
Ruy Cezar Silva

Ainda não. Nossa proposta é trazer a cultura e a arte
para o centro das discussões de políticas públicas. A filantropia e o assistencialismo deixam as pessoas no lugar em que elas estão, mas
o desenvolvimento cultural, o reconhecimento de seu valor, de suas raízes, a auto-estima e o orgulho fazem com que as pessoas se
sintam melhores, mais seguras na interlocução com o outro.

ISTOÉ – Mas dentro do Brasil, que é tão diverso, a difusão interna é complicada.
Ruy Cezar Silva

Precisamos romper um círculo vicioso que não beneficia
nem o Sudeste, que conta com 84% dos recursos das leis de incentivo. Se todos os artistas, tem que ir para o Rio de Janeiro ou para São Paulo, o fluxo torna-se muito pobre. Por que não levar do Paraná para o Acre, de São Vicente para Feira de Santana, de Parintins para Goiás? É
preciso ampliar o circuito, mas romper esse fluxo é muito difícil. Existe uma cultura econômica nisto. Para onde você dirige o olhar, você transforma algo em objeto de desejo e isso concentra valores
subjetivos, estéticos e econômicos. Como redirecionar esse olhar e potencializar tudo o que nos temos? É preciso ter coragem de romper com os padrões. Nós estamos montando um sistema de redes em
todo o Brasil. O sistema é de contrapartidas. Os recursos de fundações internacionais são para os cachês e equipes. A cidade conveniada
paga o hotel, os teatros e os custos locais. O produtor oficial da
rede fica com a bilheteria. Todos ganham e os custos são mínimos e otimizados. A população não é burra, como querem nos iludir as grandes empresas de tevê, as gravadoras. Quando a gente põe o Quinteto
da Paraíba em praça pública, as pessoas aplaudem emocionadas.
Tudo é definido pelo interesse da grande indústria. Fica pasteurizado, como uma papinha que você come com colher, sem mastigar.

ISTOÉ – Não podemos deixar de falar da nossa indústria fonográfica, dos jabás…
Ruy Cezar Silva

Mas hoje a indústria fonográfica está vivendo uma grande crise. A questão da pirataria é séria, mas, mesmo antes da pirataria,
as bandas que vendiam dois milhões de discos nas grandes gravadoras estavam recebendo menos dinheiro do que os independentes, que vendiam diretamente ao público seu produto. Por isso há um certo boom na busca por selos até no Brasil. É uma busca de alternativas, inclusive por consagrados artistas, como a Bethânia que agora está com um selo independente. Acho que a mudança vai ser profunda, muita gente
vai sofrer e perder muito até descobrir que o caminho é outro.