Danuza Leão se acomoda no sofá do apartamento na rua Barão da Torre, ajeita a camiseta justa como uma garota de Ipanema, onde mora, acende outro cigarro e, entre baforadas, encara a artilharia indiscreta. Com quem perdeu a virgindade? “Juro que me esqueci.” Com quantos dormiu? “Não consigo contar.” Qual foi o campeão de cama? “É sempre aquele que a gente está querendo, mesmo que seja tecnicamente péssimo.” A bisavó Danuza vive dias agitados, às voltas com o lançamento do livro de sua vida. Quase tudo (Companhia das Letras, 224 págs., R$ 38) é como a autora: um escândalo. É intenso como o sofrimento da mãe que perdeu o filho em um acidente, franco como a mulher que trocou o marido poderoso por um assalariado boêmio e seguro como a senhora de 72 anos que vai para a Europa no Natal para liberar filhos e netos das praxes familiares. “Quero todos livres como eu.”

A revelação da idade, na última linha do livro, é o fim de um mistério do society. O medo de envelhecer é tão forte que ela já falsificou um passaporte. É um pânico hereditário, como revela ao narrar um episódio pouco conhecido: o suicídio do pai, inconformado com o peso dos anos e com o tumor cerebral que mataria a caçula Nara Leão, querida musa da bossa nova. A exposição de intimidades, a naturalidade das observações sobre a natureza feminina e a convivência com mitos do grand monde fazem de Quase tudo uma leitura de um fôlego só. É história pura, servida com champanhe. Mescla o charme de passarelas, boates e palácios a explosões de emoção e ironias sobre uma sociedade que ela sempre fascinou. Danuza se inspira em Jorge Luis Borges para dividir a humanidade entre os que usam e não usam guarda-chuva. Ela é das que se encharcam.

Não estava de guarda-chuva quando, às vésperas do 72º aniversário, recebeu numa rua de Paris, de madrugada, a cantada de um homem “nem velho nem moço, nem bonito nem feio”. Tinha ido à França, onde viveu uma juventude tórrida, buscar inspiração para o ponto final do livro. Rejeitou o galanteio, mas o homem a seguiu e bateu na porta de seu quarto. Depois de despachá-lo novamente, mudou de idéia. “Ele tinha razão: estávamos sós, por que não podíamos ficar juntos? Afinal, a vida pode ser simples.” O desenlace da noite está no livro.

Modelo – Danuza nasceu em Itaguaçu, Espírito Santo, em família de classe média. Chegou ao Rio aos dez anos, aos 15 já era habitué da casa de Di Cavalcanti e aos 18 foi a primeira modelo brasileira contratada por uma maison francesa. Amiga de mitos como Vinicius de Moraes, viu a bossa nova nascer em sua sala. A vida em Paris foi intensa, com destaque para a paixão fulminante pelo astro Daniel Gélin. “Perdido, casado e cheio de charme e sedução, daqueles a quem não se resiste – e eu não resisti” –, conta, expondo seu envolvimento com a droga da época: heroína.

Em 1953, acompanhou um amigo em uma visita a um preso famoso, detido por uma CPI que investigava seu jornal, a Última Hora. Era Samuel Weiner, com quem teve os filhos Deborah (a Pinky), Samuel (Samuca) e Bruno. Foram anos de noitadas sem fim e viagens incríveis, como à China de Mao Tsé-tung. “Apresentei Samuel à vida glamourosa e ele me apresentou ao poder.” O casamento tinha um rival imbatível: a Última Hora, fixação de Weiner. Aos 27 anos, exausta da ausência do marido, apaixonou-se pelo cronista e compositor Antônio Maria. “Mulato de pele clara, era gordo, muito gordo, e de bonito não tinha nada”, mas tinha o que ela queria: coração e ouvidos. “Venceu Antônio Maria, com o argumento simples (…) de que não poderia viver sem mim. E existe alguma coisa mais forte?”

Existia, sim: o amor pela liberdade. O ciúme de Antônio Maria destruiu o romance. O ano era 1964, Weiner estava exilado em Paris e foi lá que ela desembarcou com os filhos, retomando a amizade com o ex, apaixonado. “Desconfio que o mito desse amor – muito estimulado por ele – era um escudo para livrá-lo de compromissos mais sérios com as dezenas de namoradas que teve depois de mim. Grande estrategista, Samuel.”

Tragédia – O terceiro foi o jornalista Renato Machado. “Renato não podia – e continua sem poder – ver um rabo-de-saia, o que para mim não dá.” Quatro anos depois, voltava à vida de solteira. Danuza foi atriz, manequim, promoter, jurada de auditório, apresentadora, produtora de novela, dona de butique, relações públicas, colunista – e é cronista e escritora.

Antônio Maria morreu e Weiner também. Em 29 de junho de 1983, a maior de todas as tragédias que os anos 80 lhe reservaram: seu filho Samuca, repórter da Rede Globo, morreu em um acidente. Danuza conheceu a depressão e mergulhou no álcool. “Um dia eu bocejei, e morri de culpa, pois essa reação do meu corpo me lembrava que eu estava viva, e eu me sentia profundamente culpada de estar viva.” A última maldição da década foi a morte de Nara, em 1989.

Cronista da Folha de S.Paulo, Danuza só possui o imóvel onde mora – três quartos transformados em um. Diz viver uma boa fase da vida, modificada pelo sofrimento. “Aprendi a reconhecer os momentos felizes quando eles acontecem e não depois (…). Parece pouco, mas não é.” Pretende se casar de novo? “Só se me apaixonar.” Por essas e outras o livro tem um Quase. “Pode ter um próximo, com coisas que vão acontecer.” Aos 72, Danuza Leão continua como a manequim que virava Paris de pernas para o ar nos anos 50: sem guarda-chuva.