O presidente da Argentina, Fernando De la Rúa, e seu ministro da Economia, Domingo Cavallo, prepararam um Natal sem precedentes na história do país. Inclusive para si mesmos. Ninguém tem dinheiro para nada. As lojas estão vazias e os comerciantes, desesperados. Os nervos estão à flor da pele. A greve geral de quinta-feira foi geral mesmo, com uma adesão estimada em até 98% dos trabalhadores. Houve violência, bloqueio de ruas em Buenos Aires, apedrejamentos, queima de pneus, enfrentamento com a polícia. A Argentina parou contra a restrição bancária implementada pelo governo – saque máximo semanal de US$ 250 em dinheiro vivo (para gastar mais, só com cartões ou cheques).

Foi um duplo golpe mortal: na expectativa dos argentinos de uma trégua na crise durante o Natal e na popularidade de De la Rúa e Cavallo, que, no mesmo dia, perdeu seu principal assessor, o vice-ministro Daniel Marx. Na noite de quinta-feira, ele jogou a toalha. Marx discordava da restrição à retirada de dinheiro.

Mais uma derrota para o ministro: Marx era um homem-chave na equipe econômica por seus contatos internacionais. Ele liderava a operação de reestruturação da dívida, missão espinhosa que, diz, vai seguir adiante “porque não é conveniente fazer uma mudança neste momento”. Em seu lugar, especula-se, entra Miguel Kiguel, ex-secretário de Financiamento de Carlos Menem.

De la Rúa e Cavallo perderam o controle da situação. Mesmo com a restrição para frear a corrida aos bancos, o total dos depósitos bancários caiu 0,21%, para US$ 68,6 bilhões entre os dias 10 e 11 de dezembro – no ano, a queda foi de 17%. Por trás desses índices está o medo – plenamente justificado – de que o governo desvalorize o peso. Na terça-feira 11, dia da abertura dos protestos contra o governo, os moradores de Buenos Aires, centenas de milhares, apagaram as luzes e saíram às ruas e varandas com panelas na mão para protestar. A cidade ficou surda, não mais surda (e cega), porém, do que o presidente De la Rúa – considerado incapaz de governar por mais de 70% dos argentinos –, que disse não estar claro para ele o motivo de tanto barulho e da greve que aconteceria no dia seguinte. “A sociedade disse basta a um modelo de fome e pobreza”, afirmou o líder sindicalista Hugo Moyano. Sete táxis foram queimados em Buenos Aires e um caixa eletrônico do Banco Bilbao Vizcaia Argentaria em La Plata foi atacado com coquetel molotov.

Aposentados – Na quinta-feira, De la Rúa enfrentou a nona greve de seu mandato. Buenos Aires amanhaceu sem ônibus, com lojas fechadas e muito lixo sobre as calçadas. Os trens e o metrô operaram em esquema de emergência, em alguns horários, assim como os hospitais públicos. Houve bloqueio de estradas. Os escritórios estatais estavam fechados. “Hoje, o país se expressa parando porque não aceita que levem o último que lhes resta, ou seja, que confisquem seus salários e poupanças”, disse à Reuters Júlio Piumato, porta-voz de um setor dissidente da principal central sindical do país, a CGT. Centenas de aposentados se juntaram ao protesto. Na frente do Congresso, foram barrados pela tropa de choque. Eles foram atingidos em suas aposentadorias e pensões por um atraso de uma semana no pagamento, que afetou 1,4 milhão de argentinos (a população do país é de 37 milhões). O governo também colocou sob risco o pagamento do 13º salário e avisou que o orçamento para o próximo ano incluirá mais cortes nos salários do funcionalismo público e dos aposentados (no meio do ano, o governo reduziu em 13% os salários das duas categorias). O arrocho fiscal de 2002 será de US$ 3,5 bilhões.

A situação está tão grave que o presidente, aparentemente desesperado, vem pedindo ajuda a Carlos Menem, o ex-presidente, recém-saído da prisão domiciliar por tráfico de influências e venda ilegal de armas. Um informe reservado publicado pela The Economist Intelligence Unit, com circulação restrita a presidentes de grandes empresas, operadores financeiros e economistas do mundo todo, diz sem rodeios: a situação está muito grave, cresce o risco de calote total da dívida e de desvalorização.

Cerco a Cavallo – O ministro da Economia se agarra ao cargo com unhas e dentes, sob fortes especulações de que será substituído por Emilio Jorge Cardenas, vice-presidente do HSBC Argentina. Lideranças do partido peronista, que faz oposição ao governo, controla o Congresso e as mais importantes províncias, exigem a saída do ministro antes de fechar qualquer acordo.

A economia do país não cresce há 40 meses, o desemprego atinge 18,3% dos trabalhadores (em Buenos Aires chega a 21%) e os consumidores tremem de medo de gastar – quando têm dinheiro – em razão da inoperância dos que conduzem o país. De acordo com a Coordenadoria de Atividades Mercantis Empresariais (Came), que agrupa pequenos comerciantes, as vendas caíram 80% após o anúncio da restrição aos saques.

A Argentina já vive como se tivesse dado o calote: sem crédito, com a arrecadação em queda (queda de 27% até 7 de dezembro, em comparação com o ano anterior), desprezada pelo FMI, que recebe Cavallo com a má vontade que se reserva aos ex- ministros. Até a Igreja Católica perdeu a resignação e a paciência. Em um duro documento divulgado no começo da noite de quinta-feira, a Conferência Episcopal Argentina critica a voracidade pelo poder, “que torna o país – empobrecido, endividado por gerações e carente de um projeto – ingovernável”. Como o FMI, a Igreja Católica, que agrega mais de 80% da população, já deu a extrema-unção aos atuais governantes.