Depois de um longo dia de trabalho, o cearense Benedito José vai às compras, decidido a gastar o salário semanal em produtos da cesta básica. A conta no mercado dá R$ 16,05. Para facilitar o troco, o dono do estabelecimento, Francisco Bezerra, arredonda para R$ 16. “Aceita palmas?”, pergunta Benedito, recebendo um sim como resposta. Saca então do bolso do calção duas notas, cada uma delas de dez palmas. De troco, recebe quatro palmas. No país onde a moeda oficial é o real, o diálogo entre
Benedito e Francisco soa estranho. Só pode mesmo ser explicado
por uma realidade bem brasileira: a exclusão social. Desde 14 de
outubro do ano passado, os moradores do Conjunto Palmeiras,
um bairro pobre a 18 quilômetros do centro de Fortaleza, passaram
a driblar a falta de dinheiro no bolso com uma solução
singela e inteligente: a confecção de sua própria moeda.

Quem lidera a reforma monetária no Conjunto Palmeira é um cearense de voz mansa e solícito, João Joaquim Segundo. Ele é o chefão do Banco Palma$ – a instituição financeira que emite o tal papel-moeda que anda circulando de mão em mão entre os cerca de 30 mil moradores do bairro. Há mais de três décadas, Joaquim Segundo está engajado em projetos sociais no conjunto. Começou como agente pastoral e acabou executivo financeiro do Banco Palma$, numa versão bem humanizada dos engravatados que comandam o mercado financeiro. “Meus clientes
são os desbancarizados. São aquelas pessoas que foram excluídas
da sociedade e, por isso, se alimentam da própria miséria.” Cerca
de 80% dos moradores do bairro não possuem renda suficiente para serem considerados incluídos sociais. Fazem parte, portanto, das estatísticas da miséria brasileira, onde 50,9% da população nordestina vive, segundo o IBGE, com menos de meio salário mínimo por mês.

Ao trocar o real pelo palma, os moradores do Conjunto Palmeiras estão rompendo com a estrutura monetária vigente no Brasil. O mais surpreendente é que não estão sozinhos nessa empreitada. As moedas sociais, como são chamados esses papéis-moedas, são uma invenção
dos anos 80. Primeiro vieram os clubes de troca, em resposta ao desemprego e à queda da atividade econômica em muitos países. O exemplo mais corriqueiro é o da vizinha Argentina. Os membros desses clubes reúnem-se periodicamente para trocar ou vender produtos.
Feitas em computador ou gráficas de fundo de quintal e válidas por
uma espécie de acordo coletivo numa determinada área, as moedas alternativas vêm ganhando nomes variados pelo Brasil afora: tupy,
zumbi, lua, bônus e ecosol. Todas usam o real como lastro.

Pelo nome abrangente de “socioeconomia solidária”, essa versão humanizada da economia conta no Brasil com um aliado de peso: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Simpatizante da causa, ele já manifestou o interesse em usar uma moeda alternativa para facilitar o comércio no Mercosul. Seria um escambo (troca) de produtos agrícolas entre os países. O objetivo seria driblar a escassez de linhas de crédito e reduzir a dependência de comida importada. “Seria uma espécie de câmbio verde”, defende o secretário de Emergência Social, José Graziano. “O Brasil poderia pagar o trigo dos argentinos
com produtos que exporta para eles.”

A proposta do câmbio verde não parece
sair tão cedo do campo das idéias, mas cresce lentamente no Brasil
um sistema monetário paralelo. Apesar de recente, a experiência do Conjunto Palmeira, no Ceará, já virou uma referência nacional. Das
90 mil cédulas de palmas impressas, 40 mil estão em circulação, e o restante, num saco de papel escondido em uma das prateleiras do “banco”. O casal Luiz Geraldino e Francisca Freitas, donos de uma farmácia, registram as vendas em real, mas a conta pode ser paga em palmas. Dia após dia, cresce o estoque da moeda no balanço de vendas da farmácia. “A socioeconomia solidária é uma forma de os trabalhadores lutarem, nos clubes de troca, contra o desemprego”, analisa Paul Singer, professor da USP, figura influente no PT e autor do livro Introdução
à economia solidária, apresentado por Luiz Inácio Lula da Silva.

Foi no fim da década de 80 que surgiu no Brasil a primeira experiência de economia solidária em São Paulo. Hoje, são cerca de seis grupos atuantes só na capital. A soma das transações comerciais feitas em bônus, a moeda social paulista, é estimada em R$ 60 mil mensais. O cálculo é de Carlos Henrique de Castro, sócio-fundador do primeiro clube de troca do País. “A socioeconomia solidária, além de contribuir para satisfazer diversos tipos de necessidades, possibilita a muitos recuperar o potencial de trabalho perdido”, explica Robson Patrocínio, um dos coordenadores do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). Os cinco clubes de troca organizados no Rio de Janeiro foram criados com a ajuda do Pacs. Ary Moraes, que coordena o grupo de Teresópolis, na região serrana, anda na carteira com moedas de real e de tupy, que é usada nas feiras de troca que acontecem no Museu da República, no Rio.
O economista Armando Lisboa, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, é tão apaixonado pela socioeconomia solidária que, além de praticá-la, anda formando no Sul do País uma geração de jovens economistas defensores da idéia. Os sócios do clube de troca que Lisboa frequenta usam o ecosol como moeda e concordam com Paul Singer: “Uma sociedade em que predomine a igualdade entre todos os seus membros precisa que a economia seja solidária em vez de competitiva.”