Duas guerras mundiais, duas ditaduras militares, uma Copa do Mundo perdida em pleno Maracanã e uma faixa de Miss Universo desperdiçada por causa de duas polegadas. Quem tem entre 18 e 21 anos não presenciou nada disso. Talvez se lembre – com algum esforço – da passagem do cometa Halley em 1986. O Código Civil brasileiro, no entanto, conheceu todos esses momentos. Assinado em
1916, vigorou durante 86 anos e só agora cede espaço para os
2.046 artigos da Lei 10.406 sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 10 de janeiro do ano passado. Conforme estabelecido na época, o novo código entra em vigor no sábado 11. É provável que os jovens de hoje consigam esperar o retorno do famoso cometa, previsto para 2061. Difícil será testemunhar novamente uma modificação tão abrangente do Código Civil, o livro de leis que mais diretamente interfere no dia-a-dia da população. Suas páginas regulamentam o casamento, a adoção e a guarda de filhos, a assinatura de contratos, a posse e a partilha de bens e até a vida em condomínio.

De todas as alterações, a mais polêmica diz respeito aos jovens. Até
a semana passada, a maioridade civil era alcançada aos 21 anos.
Mesmo com a carteira de habilitação nas mãos, livre para frequentar espaços com restrição etária e submetidos aos trâmites do direito
penal, rapazes e moças entre 18 e 21 anos não podiam casar, assinar escritura de compra ou venda de imóvel nem viajar ao Exterior sem
a autorização expressa do pai ou responsável. Agora, a maioridade
civil se iguala à maioridade penal e delega ao jovem de 18 anos responsabilidade total sobre seus atos. “O Código é um anseio antigo
da sociedade. Responde às mudanças de comportamento ocorridas no mundo desde 1916”, defende o jurista Miguel Reale, um dos responsáveis pela implantação das mudanças. “Estamos na era da informação. O
rapaz vota para presidente desde os 16 e, aos 18, já atingiu a plenitude do conhecimento. Está pronto para exercer com autonomia qualquer decisão na esfera civil”, acredita. Em 1969, Reale assumiu a coordenação da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil e, desde 1975, acompanhou o debate de mais de mil emendas na Câmara e
outras 400 no Senado, mantendo a essência da primeira versão.

Incoerência – A opinião de Reale, no entanto, não é consenso nem entre os jovens. A maioria concorda com ele e comemora. “É incoerente a gente dirigir e não poder comprar o próprio carro, mesmo com renda própria”, afirma Stella Lopez, 19 anos, estudante de direito. Mas a possibilidade de emancipação aos 16, por exemplo, enfrenta resistência. “Com essa idade ninguém pode ser preso. Se eu fosse emancipada e cometesse algum crime, não poderia responder processo. Isso é errado”, protesta a estudante do ensino médio Ludmila Romanoff, 17 anos. Ela se refere ao Código Penal que considera responsável por atos criminosos apenas os maiores de 18 anos. “A emancipação não deveria existir. A maioridade só deveria ser alcançada aos 18”, concorda o estudante de direito Ivan Gaioll, 19 anos. Sob o Código antigo, quando a maioridade era definida depois dos 21, o jovem poderia ser emancipado somente após os 18. Foi o que fez o empresário Rodrigo Bittar, hoje com 24 anos, quando tinha 19. O banco do qual ele era cliente transferiu dinheiro de sua poupança para a conta corrente sem a sua autorização e ele decidiu entrar com um processo. “Como eu era menor de 21, disseram que apenas meus pais poderiam assumir o caso. Mas o dinheiro era meu! Aos 18 já temos capacidade de brigar por nossos direitos e assumir nossas responsabilidades”, afirma. “Fiz questão de me emancipar para resolver a situação sem a interferência deles”, conta. Bastou para que o banco propusesse um acordo. Agora, um parágrafo permite que alguém na situação de Rodrigo resolva a situação sem depender de escritura de emancipação. “Foi introduzida a possibilidade de emancipação tácita ou legal (sem necessidade de escritura) para os maiores de 16. Basta comprovar vínculo empregatício e renda. Se o jovem estiver empregado e for auto-suficiente, poderá ser tratado como maior”, explica a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, consultora do projeto de lei.

O descompasso entre direito civil e direito penal e dúvidas quanto à interpretação de alguns artigos têm colocado a pulga atrás da orelha de muitos profissionais de direito. “Se o jovem pode se emancipar aos 16 e, com isso, constituir empresa, o que vai acontecer se ele emitir nota fiscal fria ou sonegar impostos? Afinal, ele continua imputável pelo Código Penal”, nota o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Leonardo Pantaleão. “Reduzir a maioridade no direito penal é uma forma de proteger a sociedade. Se o mesmo acontece no direito civil, a sociedade se torna mais fragilizada”, diz. Para Ruy Pavan, um dos coordenadores do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a defasagem em relação à maioridade civil sempre serviu de argumento para evitar a redução da maioridade penal. “Agora haverá pressão ainda maior nesse sentido. O período entre 18
e 21 anos é essencial para o amadurecimento. A idéia de que o jovem
se torna adulto mais cedo é equivocada. Não se pode confundir acesso
a informação com maturidade”, diz. “Com a maioridade, cessa, por exemplo, o dever de sustento dos pais sobre os filhos. Eles perdem
o amparo legal da família”, diz. Segundo o promotor da infância e juventude do Ministério Público de São Paulo Vidal Serrano Nunes
Júnior, nada mudará nesse sentido. “A maioria dos juízes já estendia
ao jovem de 24 anos o direito a pensão de alimentos, desde que matriculado em curso superior e sem renda suficiente”, explica.

Grande parte das atualizações do Código já acontece na prática, seja por influência de leis e estatutos específicos seja pela jurisprudência. Um dos capítulos introduzidos, por exemplo, rege a chamada união estável, regulamentada por lei específica de 1996. Ao contrário do que muitos pensam, desde então não há definição de tempo mínimo para uma união ser considerada estável. Gozam os direitos de casal o homem e a mulher que viverem uma união de convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família. De qualquer forma, há quem critique. “Este artigo deveria ser mais explícito. Não estabelece o tempo necessário para a união ser considerada duradoura e, caso haja discordância entre os ex-companheiros, deixa para o juiz decidir com base em provas e testemunhas se havia objetivo de constituir família”,
diz Paulo Lins e Silva, vice-presidente da União Internacional dos Advogados. O ator Felipe Camargo, 42 anos, namorou durante três
anos a modelo Kelen Varella. Apesar de terem morado juntos, Felipe
não considera o relacionamento uma união estável. “Não foi uma
união contínua. Brigamos algumas vezes e ela chegou a sair de casa.
E não tínhamos intenção de constituir família. Já o meu caso com
a Vera Fischer é diferente, pois tivemos o Gabriel”, compara o ator.

A disputa entre Felipe Camargo e a atriz pela guarda do filho ainda hoje rende destaque na imprensa. Para ficar com o menino, o ator teve de provar a incapacidade temporária da mãe de criá-lo já que, pela lei de 1916, a mãe era sempre favorecida. Agora, valem os interesses da criança. Fica com os filhos quem estiver mais preparado para criá-los. Esta é mais uma das modificações do novo Código que na verdade apenas ratifica o que já acontece nos tribunais desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. “A nova lei acaba com a discriminação de que só a mãe tem competência para criar filhos”, comemora o jornalista Eduardo Ávila, 45 anos, responsável pela guarda da filha Anaisa, 11. Alguns meses depois da separação, há cinco anos, a menina decidiu viver com ele, mesmo contra a vontade da mãe. Prevaleceu a vontade da filha. “Hoje as mulheres também trabalham fora e muitas ficam pouco tempo em casa. Homens e mulheres vivem a mesma situação”, defende

Polêmica – Apesar de ser uma resposta à modernização da sociedade, a implantação do novo Código tem sido combatida pela Ordem dos Advogados do Brasil, que repudia o processo desde a sanção presidencial e na última semana voltou à carga com suas críticas. “O Código já nasce defasado. O próprio relator do projeto, o deputado Ricardo Fiúza, pediu a alteração de 300 artigos. Se é para mexer tanto, por que aprovar?”, questiona o presidente da entidade, Rubens Approbatto. Autor do livro Novo Código
Civil e legislação extravagante anotados
(Edit. Revista dos Tribunais),
o procurador de Justiça de São Paulo Nelson Nery Júnior discorda. “É
um contra-senso alguém defender um Código de 1916 por considerar
o novo defasado”, diz. Nery prefere elogiar a mudança de mentalidade.
“O Código antigo era baseado no liberalismo do século XIX. Valia o contrato, mesmo que favorecesse apenas uma das partes. Agora, o
que deverá nortear as relações é a função social dos contratos, da
terra, das empresas. Além disso, os juízes terão mais espaço para interpretações”, explica. O juiz poderá impedir um banco de cobrar juros exorbitantes se achar que seu cliente pode quebrar. Também pode
decidir uma desapropriação de terras (o que antes era prerrogativa
do Poder Executivo). Se um número considerável de pessoas mora e trabalha em uma área por cinco anos e implantou nela obras e serviços
, o proprietário pode perdê-la em nome da função social da terra.

O novo Código também representa um amparo à relação interpessoal e à vida em comunidade. Exemplos disso são os artigos referentes ao condomínio, ausentes no código anterior. A lei específica sobre o assunto previa multa de até 20% para quem atrasasse o pagamento do condomínio. Agora, a punição não pode ultrapassar os 2%. Se a medida pode ser encarada como um incentivo à inadimplência – como querem alguns –, outro artigo é a salvação de quem convive com vizinhos barulhentos. Pela nova lei, o condômino anti-social – o briguento ou aquele que não deixa ninguém dormir – poderá receber multas de até dez vezes a taxa mensal e até ser expulso do prédio. Isso vai exigir cuidados redobrados dos irmãos Luisa e Franco Grandes, de 15 e 13 anos. A baterista e o guitarrista, que moram em um apartamento de classe média alta em São Paulo, vivem recebendo reclamações de uma vizinha por causa de seus ensaios. “Tremo quando o interfone toca. Sei que é alguém reclamando do som”, conta Luisa. “Decidimos ensaiar à tarde, quando os vizinhos não estão em casa”, diz Franco. E o que Chiara, a mãe deles, pensa disso tudo? “Vou rezar para que todos os condôminos saiam de férias”, brinca. Afinal, é ela quem pagará o pato se a vizinhança perder a paciência. Os músicos ainda não completaram 18 anos. Ainda podem curtir por mais alguns anos seu tempo de irresponsabilidade civil.