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Não é muito fácil entender por que crianças que têm hoje cinco anos adoram ouvir, ver e dançar a música “O Vira”, na voz e no corpo de Ney Matogrosso. E elas amam. Não têm ideia de quem seja aquela criatura andrógina e magrela cheia de penas e panos esvoaçantes amarrados pelo corpo. Nunca ouviram falar em Secos & Molhados nem em Lennie Dale ou Ivaldo Bertazzo. Elas simplesmente fruem a música e se põem imediatamente a rodopiar e a cantar. Sem a menor intenção de diminuir o oceânico taleto do intérprete e dançarino em questão, em boa medida, este fenômeno deve ter a ver com outro detalhe que as crianças, assim como a maior parte da população, desconhecem.

O Vira é uma composição de Luhli, a moça da esquerda na foto, com João Ricardo. Foi a própria Luhli, aliás, quem apresentou Ney Matogrosso ao português João Ricardo, que procurava um cantor para o que viria a se tornar o fenômeno pop Secos & Molhados. Mas o assunto aqui, precisa da outra metade para fazer sentido. A garota mais à direita na foto é Lucina. Juntas, as duas meninas formaram uma das mais produtivas, longevas e subavaliadas duplas da música popular brasileira. As cantoras, compositoras e multi-instrumentistas “Luhli & Lucina” produziram durante 25 anos e compuseram nada menos que 800 músicas.

Vale dizer que Luhli já foi Luli e Lucina já foi Lucinha, Lucinda e Lucelena. As duas artistas que aparecem no auge da juventude na foto dessas páginas são consideradas absolutamente especiais por uma série bastante variada de indicadores. Vejamos então. Entre os intérpretes de suas criações estão nomes que encerram a mais ampla definição de diversidade. Vão de Nana Caymmi a Rolando Boldrin, com escalas em nomes como o de Zélia Duncan e, claro, o do próprio Ney, que projetou inúmeras canções da dupla, além da tão adorada pela criançada “O Vira”. As duas são reconhecidas como megapioneiras do que se convencionou depois chamar de “gravadoras independentes”. Bancaram do próprio bolso a gravação do hoje histórico LP “Luli e Lucinha”, em 1979.

Se isso e a força de suas obras artísticas já não fossem suficientes, as duas meninas levaram adiante o que em geral, para a maioria, não passava de um adorno com estampa de flor ou uma faixa de pano na cabeça.
O ideá­rio da contracultura no que diz respeito ao questionamento dos modelos de relacionamento afetivo e amor. Ambas levaram por nada menos do que 15 anos um casamento a três com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca, autor da foto acima.
Cada uma das moças teve dois filhos dele, que morreu vítima de um câncer que acabou por separar os três.

Ambas estão por aí, um pouco esquecidas pelas rádios e pela mídia toda, é verdade, mas ainda muito perto da arte, fazendo shows eventuais, poemas e trabalhos junto a ONGs e pessoas com diferentes necessidades especiais. A boa notícia é que um interessante documentário sobre a dupla está em fase final de produção. Dirigido por Rafael Saar, o filme resgata imagens incríveis filmadas em super 8 nos anos 70, nas comunidades em que as duas artistas viviam e faziam suas músicas. E, bem mais do que isso, resgata a história
e o legado de duas artistas que merecem um lugar importante na história da arte popular brasileira.

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A coluna de Paulo Lima, fundador da editora Trip, é publicada quinzenalmente


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