Uma das constatações mais interessantes do belo documentário Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto, que será exibido no canal a cabo GNT, no domingo 9, com diversas reprises durante a semana seguinte, é que, ao contrário do que sugere a linguagem concreta de sua poesia, o poeta pernambucano tinha vida privada curiosa e até divertida. Com roteiro e direção do carioca Bebeto Abrantes, o filme mostra cenas inéditas da vida familiar do austero escritor e diplomata entremeadas a seu último depoimento audiovisual, dado à equipe exatamente no ano de sua morte, 1999. Assim, é possível ver um João Cabral jovem e magrelo brincando com um dos cinco filhos numa bóia dentro de um rio, ou um esportista empunhando arco e flecha. Da mesma forma, às vésperas de completar 80 anos, lá está o autor de Morte e vida severina com certa dificuldade para falar, mas absolutamente lúcido. Entre as preciosidades, o documentário
traz o áudio de um confronto entre ele e Vinicius de Moraes ocorrido durante um sarau em Genebra, em 1964. Ouve-se Vinicius cantando melodias apaixonadas e, ao fundo, a voz provocante de João Cabral: “Sem ser de amor, você não sabe fazer não, né?” Ao que o poetinha devolve: “Já vem você com seu racionalismo. Ainda vou botar musiquinha naquelas suas cabras…”

O filme, que arrebatou prêmios em festivais como o de Gramado e o da Bahia, deverá estar nos cinemas e nas livrarias no ano que vem. A editora Planeta vai lançar uma brochura com a íntegra do depoimento de João Cabral, além de declarações de brasileiros e espanhóis dissecando a importância para o escritor das cidades do Recife e de Sevilha, “as musas do trabalho e da vida dele”, como definiu Abrantes. A entrevista principal, a exemplo de toda a obra do autor de Sevilha andando, não é confessional nem tem auto-referências ou concessões ao lirismo. Novas facetas, contudo, vêm à tona nos diversos depoimentos, em especial no da cineasta Inez Cabral, sua filha. “Ele dizia que era diplomata porque tinha de sustentar a família e porque a diplomacia dava a ele tempo para escrever”, contou ela. Para complicar, a carreira ainda o obrigava a enfrentar o pânico de viagens aéreas, um de seus maiores temores, como lembra o poeta Lêdo Ivo. “Ele tomava tantos remédios que viajava praticamente dopado”, afirma. Inez confirma a fobia do pai. “Como achava que iria morrer em um desastre aéreo, ele nunca deixava a família ir no mesmo vôo”, conta Inez. O próprio poeta aparece no filme brincando a respeito disso. “Sobre o meu pavor da morte o Rubem Braga disse: “Você fala tanto do inferno que vão acabar inventando um só para você.” O poeta que não gostava de música tinha seus rasgos de bom humor.