NELSON

Chamava-se Nelson, em homenagem a Nelson Gonçalves e Nelson Rodrigues. Seu pai, um fã entusiasmado do vozeirão do primeiro e das crônicas esportivas do segundo, achou desse modo um jeito de homenagear os dois ídolos de uma só vez. E embora a geração deste Nelson desconhecesse as canções passionais do Gonçalves e os provocativos textos do Rodrigues, a história de seu nome o enchia de orgulho. Quando lhe perguntavam “qual seu nome?”, respondia com estilo:
– Nelson, em honra de Nelson Gonçalves e em louvor de Nelson Rodrigues.

Nos eventos sociais, nas entrevistas de emprego, nas abordagens amorosas, sempre repetia tal bordão. Um dia, no novo emprego onde estava havia dois meses, conheceu um certo João (o nome João era também fruto de homenagem a dois célebres Joões – João Gilberto e João Saldanha). Sentiram grande afinidade e tornaram-se amigos inseparáveis, unha e carne.

Iam a todas as festas juntos, e também ao estádio, à praia, ao bar, ao parque. Chegaram ao cúmulo de namorar duas irmãs, o que os deixou ainda mais unidos.

Mas eis que um dia brigaram. Foi uma briga terrível, a primeira e única. Por pouco não foram às vias de fato. No auge da zanga, Nelson exclamou, inflamado:
– Isso nunca poderia dar certo mesmo. Nelson Gonçalves detestava João Gilberto.

Ao que João respondeu:
– E João Saldanha era inimigo de morte de Nelson Rodrigues.
A última frase era uma mentira histórica. Mas não importava. Deram-se as costas e nunca mais se falaram.

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AURÉLIA

Aurélia vivia no porão dos segundos nomes, esquecida e empoeirada. Sua dona, Márcia Aurélia, a desprezara por anos, adotando para tudo o primeiro nome. Em nenhum lugar era mencionada. Nem nos prontuários de consultórios médicos, nem em cartões de embarque ou de crédito, nem mesmo na conta de luz. Havia se tornado um A ponto, sem identidade, sem deferência alguma, vida de puro desprezo.

No porão, Aurélia se deparou com outros segundos nomes com igual sentimento de rejeição. Havia de tudo, desde Carlos inspirados em nomes de cantores até Assis e Chagas que homenageavam santos. E também Cristinas, Marias, Antônios, Jesus e Robertos às dezenas. Aurélia era na verdade o menos corriqueiro dos segundos nomes ali deixados. Sentia-se um tanto quanto vaidosa disso, especial, apesar do amor próprio ferido.

Um dia acordou macambúzia. Pensou com seus botões: “Ou fico aqui para sempre e me resigno ou convoco todos a uma rebelião e mudo de vida.” Chamou uma das muitas Cristinas que lá conheceu e lhe contou seu plano: mexer com os brios de todos os segundos nomes ali abandonados e incitá-los a sair para sempre daquele porão escuro esquecido por todos.

Quando se preparava para a convocação geral, eis que surgiu um inesperado Arimatéia, recebido por todos com surpresa e, verdade seja dita, com uma ponta de inveja. Arimatéia logo se tornou motivo de admiração e desejo. Marias, Cristinas, Reginas e mesmo alguns Carlos se engraçaram pelo raro personagem. Mas o cara encantara-se com Aurélia, só tinha olhos para ela, o que despertava ciúmes loucos no porão. Apaixonaram-se e não largavam mais um do outro. “Aurélia e Arimatéia together forever”, pichavam pelos quatro cantos do lugar.

Desde então Aurélia nunca mais teve desejos de motim. Acomodou-se em seu canto e lá quedou-se, feliz e apaixonada. Não lhe importava mais ser esquecida pelo mundo.
 


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