Dárcio de Jesus

"Fui diplomado pela CIA e o instrutor
do curso era Mister Peter Costello"

“…Quando a polícia chegou, tentei me confundir no meio da multidão mas não deu certo. Eles me identificaram logo. Fui preso por dois agentes do Dops, um deles armado com uma tábua cheia de pregos. Na mesma hora me empurraram para dentro de uma perua Rural Willys, na qual mais tarde fui fretado para São Paulo…”

Quem conta a história acima é José Dirceu, lembrando a sua prisão – e a de
mais 800 estudantes – após o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), em 1968.
O relato consta do livro Abaixo a ditadura: o movimento de 68 contado por seus líderes, de Dirceu e Vladimir Palmeira, escrito em 1998. Hoje, passados 37 anos,
um dos personagens daquele episódio histórico, que prendeu o então líder estudantil, decidiu romper o silêncio em entrevista exclusiva a ISTOÉ. Trata-se do ex-investigador do então Departamento de Ordem Política e Social (Dops),
Herwin de Barros – treinado pela CIA (Central de Inteligência Americana) no
Brasil meses antes do golpe de 1964. Ele aparece em boa parte das fotos ao lado
de Dirceu no momento de sua prisão, durante a operação comandada pelo dele-
gado José Paulo Bomcristiano. Detalhe: no momento em que prendeu Dirceu
no sítio em Ibiúna, Herwin estava desarmado, ao contrário dos demais, que
portavam até granadas e submetralhadoras.
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O 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado clandestinamente em um sítio em Ibiúna (SP), acabou com a prisão de mais de 800 estudantes, em 12 de outubro de 1968. Na época, José Dirceu, um dos principais líderes do movimento estudantil do País, era ferrenho opositor da ditadura militar. Dirceu foi preso e depois incluído no grupo dos que foram liberados e trocados pelo embaixador americano Charles Burke Ellbrick, sequestrado, em 1969, pela ALN e MR-8. Dirceu foi para o México e depois seguiu para Cuba, onde fez curso de guerrilha. Voltou para o Brasil em 1971, clandestinamente.
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O 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado clandestinamente em um sítio em Ibiúna (SP), acabou com a prisão de mais de 800 estudantes, em 12 de outubro de 1968. Na época, José Dirceu, um dos principais líderes do movimento estudantil do País, era ferrenho opositor da ditadura militar. Dirceu foi preso e depois incluído no grupo dos que foram liberados e trocados pelo embaixador americano Charles Burke Ellbrick, sequestrado, em 1969, pela ALN e MR-8. Dirceu foi para o México e depois seguiu para Cuba, onde fez curso de guerrilha. Voltou para o Brasil em 1971, clandestinamente.

Troféu – Ele abordou Dirceu tendo nas mãos apenas um pequeno ancinho que achara na porteira de um sítio das redondezas e um pedaço de pau. Herwin conta que decidiu deixar sua arma no Dops e assim conduziu Dirceu e outro líderes estudantis, como Luís Travassos e Antônio Ribeiro Ribas, para o camburão Rural Willys. “Somente dentro do carro – já a caminho do Dops – é que Herwin leva uma metralhadora. “Ainda guardo o ancinho em casa como se fosse um troféu. Se o ministro quiser, posso devolvê-lo solenemente, com honras de estilo”, disse o ex-agente do Dops, hoje um advogado criminal de 60 anos. “Quero parabenizá-lo porque estou vendo com bons olhos o que o governo está fazendo”, afirmou. Herwin lembra como se fosse hoje os detalhes daquele serviço: “Os policiais foram orientados para obter com urgência informações dos líderes sobre pessoas e aparelhos montados pela subversão. Isso signi-
ficava que, uma vez presos, os capturados deveriam ser submetidos a interrogatório no local, em lugar ermo, antes de ser apresentados ao setor competente.”
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Prisão: Acima, o agente do Dops Herwin de Barros, com o ancinho na mão, prende Luís Travassos. José Dirceu, de branco e de barba, está atrás. Abaixo, Herwin está dentro do camburão ao lado de Antônio Ribas e Dirceu

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Prisão: Acima, o agente do Dops Herwin de Barros, com o ancinho na mão, prende Luís Travassos. José Dirceu, de branco e de barba, está atrás. Abaixo, Herwin está dentro do camburão ao lado de Antônio Ribas e Dirceu

A operação para prender os estudantes daquele congresso que estava proibido pela ditadura foi gigantesca: contou com a participação de mais de 200 policiais do Dops e da Força Pública. “Houve alguns disparos, mas não se sabe quem os deu. O cerco foi muito bem feito. O reconhecimento de Zé Dirceu, Ribas e Travassos foi fácil. Aliás, nenhum dos três tentou a fuga”, conta Herwin. Dirceu estranhou o fato de ele não estar armado. “Eu respondi que não ia dar tiros em estudantes”, recorda. “Daí, Zé Dirceu, que mantém ainda hoje aquele sorriso matreiro, duvidou. Eu disse a ele que demonstraria na prática que não estava fazendo o papel do policial bonzinho para obter alguma informação. Zé Dirceu perguntou como. Eu respondi que não me prestaria a ser o condutor do flagrante, apesar de ser o homem de confiança do delegado e, portanto, o responsável pela condução dos líderes ao Dops”, relata. Chegando ao gabinete do então diretor do Dops, Aldário Tinoco, Herwin entregou Dirceu a outros investigadores. “Não queria participar daquilo como condutor. Aproveitei o tumulto e pulei a janela de um salão. Fui embora e só voltei dois dias depois”, disse.

Dárcio de Jesus

Relíquia histórica: Herwin desobedeceu seus superiores e decidiu ir ao cerco de Ibiúna desarmado. Para prender José Dirceu e outros líderes estudantis, o agente do Dops usou este ancinho, que achou em um
sítio próximo do local onde se realizava o congresso. No livro que escreveu em 1998, Dirceu lembrou que um dos agentes que o prenderam estava “armado com uma tábua cheia de pregos”

“…No Dops, sim, levei muita porrada, porque os policiais da Força Pública e os delegados que tinham apanhado nas manifestações estavam me esperando para descontar. Levei chute, tapa no ouvido, cotovelada, humilhação, cusparada, mas isso era tratamento para movimento estudantil, longe do que sofreram depois os presos da luta armada…”, conta Dirceu no livro. Hoje, quando é perguntado por que não levou sua arma para Ibiúna, Herwin explica: “O que os estudantes queriam para o País talvez fosse o que eu queria também. Estamos vendo hoje que realmente foi o melhor. Se eles fossem marginais, eu agiria com o mesmo radicalismo com que eles pudessem agir comigo”, explica hoje o ex-investigador, que era conhecido pelo apelido “Brucutu” na época em que atuava no Departamento de Investigações da polícia, antes de servir no Dops. “Meu apelido era inspirado no personagem de quadrinhos, por causa do meu porte físico avantajado e também pela fidelidade que tinha à minha tribo”, afirma.

Herwin recorda que levou uma reprimenda do então chefe do serviço de Informação do Dops, Francisco Nascimento. “A minha atitude foi muito comentada na época entre os policiais, uns a favor e outros contra, principalmente alguns delegados da cúpula. Fui policial até 1984, quando paguei o preço definitivo por não ter maltratado Dirceu e por não admitir conduzi-lo para ser autuado em flagrante”, afirma. O ex-investigador sofreu um processo administrativa em 1979. “Uma acusação infundada de suborno feita por um bandido. O parecer do conselho da Polícia Civil era para aguardar o término da ação penal. Mas em 1984, faltando três meses para prescrever o processo, mudaram o parecer. Fui demitido”, lembra Herwin. “Durante um interrogatório, o delegado Enos Beolchi não permitiu a presença de meu advogado, o então presidente da OAB-SP, Márcio Thomaz Bastos (hoje ministro da Justiça). E o delegado disse: ‘É bom ser amigo de subversivos, não é?’”, recorda. Dois meses após a demissão, Herwin foi absolvido por inexistência do crime. Brucutu viu seu ex-prisioneiro no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 1999. Dirceu era deputado federal e presidente nacional do PT. Ele recorda o diálogo: “Eu o chamei, ele olhou e eu perguntei se me reconhecia. Ele falou: ‘Me dá um gancho.’ Eu respondi: ‘Serve um ancinho?’ Aí, o Zé Dirceu me abraçou e até me levantou. No final me convidou para almoçar com ele em Brasília. Nunca fui.”

Treinamento – O homem que prendeu Dirceu havia sido treinado por instrutores ligados à CIA. “Naquele tempo, eu tinha vinculação com a CIA. Eu havia sido diplomado por aquela instituição, através da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, dirigida pelo general Adélvio Barbosa de Lemos (no governo de Adhemar de Barros)”, contou Herwin. O curso de “Segurança Pessoal de Dignitários” começou em novembro de 1963, e Herwin recebeu seu diploma em 12 de março de 1964, dias antes do golpe militar. A CIA de fato atuou no Brasil bem antes do golpe que derrubou João Goulart. Para entrar no curso, ele teve de se submeter ao polígrafo – ou o detector de mentiras. “Parecia uma cadeira elétrica. Ligavam eletrodos na pessoa para medir a sudorese e os batimentos cardíacos. Perguntavam qual era a nossa ideologia, se simpatizávamos com o comunis-
mo”, lembra Herwin, que foi escolhido para fazer o curso junto com outros nove colegas. As aulas teóricas eram na Escola de Polícia, na rua São Joaquim. As
aulas práticas eram na Academia da Força Pública (antiga Polícia Militar),
conhecida como “Barro Branco”.

Ideologia – Herwin revela que as aulas teóricas ensinavam como reconhecer a ideologia dos investigados. “Era um curso para detectar ideologias, para que, quando chegasse a revolução, se pudesse discernir quem é quem. As aulas práticas referiam-se a controle de multidão, guerrilha urbana, resistência a gás lacrimogêneo sem máscara”, revela. Herwin afirma que não havia aulas de tortura no curso: “A maldade e a bondade são inerentes ao ser humano. Não creio que há necessidade de escolas para tortura. Quando o ser humano quer ser mau, ele cria. Então, não havia cursos para tortura.” Seu instrutor era um americano. “Ele se chamava Peter Costello, do chamado Ponto 4, da Escola das Américas. Todos sabiam que a escola era ligada à CIA. Mister Costello era civil e na época deveria ter uns 60 anos”, lembra. O tradutor era o capitão Trielli, da Força Pública. Os alunos eram indicados pelos diretores da Força Pública, da Guarda Civil e da Polícia Marítima. Herwin explica por que decidiu fazer essas revelações quase 40 anos depois: “Quer queira, quer não, faço parte dessa história junto com o Zé Dirceu.”