Há pouco mais de dez anos, no dia 4 de fevereiro de 1992, um oficial do Exército da Venezuela irrompeu do anonimato ao liderar uma tentativa de golpe contra o então presidente Carlos Andrés Pérez. O militar rebelado, o coronel pára-quedista Hugo Chávez Frías, foi preso com seus seguidores, condenado, posteriormente anistiado e, seis anos depois, acabou eleito presidente da República com a promessa de levar a cabo uma “revolução bolivariana” (referência ao libertador Simón Bolívar). Na quinta-feira 7, poucos dias depois do décimo aniversário de sua intentona, foi a vez de Chávez enfrentar os demônios saídos da caixa de Pandora que ele abriu. Fardado, o coronel da Força Aérea Pedro Vicente Soto interrompeu um seminário sobre liberdade de imprensa em Caracas para pedir publicamente a deposição do “governo tirânico de Chávez” e a convocação de novas eleições. Uma multidão de irados manifestantes não só impediu que soldados da Polícia do Exército prendessem o oficial dissidente como realizou uma passeata em frente à residência oficial do presidente. No dia seguinte, declarando-se “em rebelião”, o capitão da Guarda Nacional Pedro Flores entregou ao secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Santiago Cantón, um documento assinado por cerca de 20 militares da ativa no qual se acusava Chávez de “traidor da pátria” e de
malversação de fundos públicos.

Aparentemente, Chávez desdenhou a atitude rebelde dos dois oficiais. “Estive numa rebelião militar e isso não se faz numa praça com mil pessoas. Isso se faz com soldados, com fuzis, com idéias, vontade
e determinação”, ensinou o ex-golpista. “Aqui não há nenhuma possibilidade de que haja um golpe militar que imponha uma ditadura”, continuou o presidente. Para desqualificar o coronel Soto, Chávez lembrou que ele foi assessor do ex-presidente Carlos Andrés Pérez, que foi afastado do cargo em 1993 e preso sob acusação de corrupção. O presidente Chávez também lembrou que o coronel Soto foi preterido
numa promoção a brigadeiro – ele chegou a entrar com uma ação
no Tribunal Supremo de Justiça.

Depois de varrer, a golpes de plebiscitos e eleições, a oligarquia política que dominou a Venezuela nos últimos 40 anos, Chávez começa agora a amargar a queda de popularidade, que caiu de 90% no início do governo para pouco mais de 30% hoje em dia. O presidente ainda tem forte apoio das camadas mais pobres da população – nada menos do que 70% dos venezuelanos vivem abaixo do nível de pobreza. No início de seu governo, Chávez se aproveitou do desgaste dos partidos tradicionais e da alta dos preços do petróleo no mercado internacional. A Venezuela é o quarto maior produtor mundial do petróleo, que responde por quase 80% das exportações do país. Mas a queda da cotação do barril a partir do segundo semestre do ano passado e o corte na produção ameaçam jogar o país na recessão. Reflexo dessa situação foi a decisão do governo, na quarta-feira 13, de cortar 7% dos gastos públicos, aumentar impostos e acabar com o sistema de bandas cambiais, permitindo a livre flutuação. Com isso, o bolívar – a moeda venezuelana – desvalorizou-se em 19%, atingindo 980,50 por dólar.

Além disso, a peculiar maneira de fazer política está deixando Chávez isolado. Nos últimos meses, os setores empresariais que sempre foram hostis à retórica populista do presidente – que qualificam de autoritária e esquerdista – conseguiram a adesão dos sindicatos à cruzada antichavista. No mês passado, a oposição acusou o governo de tentar impor, no tapetão, um pacote de medidas, entre as quais uma reforma agrária. Perdendo apoio político, o presidente cai cada vez mais na tentação de apelar diretamente “às massas”. “Chávez ainda tem o apoio da cúpula militar, mas os oficiais de média patente estão cada vez mais contra ele. As outras instituições já o abandonaram. A Igreja, os meios de comunicação, os empresários e sindicatos também estão contra ele. As Forças Armadas eram a instituição que faltava”, disse o professor Hernán Castillo, da Universidade de Caracas. “Temo muito a solução militar e espero que ela não se apresente. Esse tipo de solução traz de volta o mesmo messianismo que elevou Chávez ao poder”, disse Teodoro Petkoff, ex-guerrilheiro e ex-integrante do governo Rafael Caldera (1994-1998).

Democrata de fachada – Precisamente por esses temores, soou completamente temerária a atitude do ex-presidente social-democrata Carlos Andrés Pérez, que já foi tido como modelo de estadista latino-americano. Vítima da tentativa golpista protagonizada por Chávez, Pérez declarou numa entrevista à Rádio e Tevê da República Dominicana que o Exército venezuelano “tomará a decisão de afastar Chávez do poder”. Segundo o ex-presidente: “O povo já derrotou Chávez, mas ainda não o derrubou. Essa derrubada deve ocorrer a qualquer momento, e no final caberá ao Exército tomar a decisão.” Com democratas desse naipe, não é à toa que salvadores da pátria, armados ou não, povoem cada vez mais o cenário político do país vizinho. Como a dinastia Bourbon na França, que tentou ignorar que o céu lhe caía à cabeça, a elite venezuelana parece ter a estranha mania de não perdoar e não aprender.