Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) em Haia, na Holanda, viveu na semana passada uma descida aos infernos quando os promotores descreveram as campanhas de “limpeza étnica”, assassinatos em massa, torturas e deportação nos Bálcãs (Croácia, Bósnia e Kosovo) entre 1992 e 1999, atrocidades idealizadas pelo ex-presidente da Sérvia Slobodan Milosevic, que está sendo julgado por aquela corte. “Alguns dos incidentes revelaram uma selvageria quase medieval e uma crueldade calculada que foi muito além dos limites da guerra legítima”, afirmou a promotora-chefe Carla del Ponte. “Este tribunal e este julgamento em particular são a mais forte demonstração de que ninguém está acima da lei ou do alcance da Justiça internacional”, declarou Del Ponte, no mais importante julgamento de crimes de guerra na Europa desde o processo contra os líderes nazistas em Nuremberg, em 1946-47. O promotor-assistente Geoffrey Nice descreveu, entre outras coisas, como crianças foram queimadas vivas e mulheres atiradas em poços por tropas sérvias. “Milosevic assistiu aos acontecimentos de seu gabinete. Os crimes foram cometidos por outras pessoas por ordens dele”, disse. A chefe da promotoria foi eloquente: “Não busquemos ideais por trás de seus atos. Não foram as convicções pessoais nem o patriotismo, nem sequer o racismo ou a xenofobia que animaram o acusado, mas a busca do poder, do poder pessoal”, arrematou Del Ponte.

Mas Milosevic não se deixou intimidar, muito pelo contrário. “Não reconheço a legitimidade deste tribunal”, rebateu o ex-líder ao presidente do TPII, o juiz britânico Richard May, entremeando olhares e gestos raivosos com sorrisos irônicos. Depois, virando-se para a promotora-chefe, acusou: “A senhora já ditou a sentença.” Como bom comunista, Milosevic deve ter se inspirado no exemplo de George Dimitrov, líder bolchevique búlgaro acusado em 1934 pelos nazistas pelo incêndio do Reichstag (Parlamento). No tribunal, atuando como seu próprio advogado, Dimitrov acusou o regime, desafiou Joseph Goebbels e Hermann Goering e acabou absolvido. Advogado de profissão, Milosevic justificou as ações dos sérvios na Província de Kosovo (região de maioria albanesa) em 1999 como operação antiterrorista e acusou a Otan (a aliança militar ocidental) pelo êxodo de milhares de albaneses: “Os americanos vão até o outro lado do mundo, no Afeganistão, combater o terrorismo. E isso é considerado lógico e normal. Mas aqui, neste tribunal, a luta contra o terrorismo na sua própria casa, no coração do meu país, é considerado crime. Isso é o mesmo que dizer: você não é dono de sua própria casa”, declarou Milosevic, dedo em riste. Ele também mostrou um vídeo de 50 minutos feito pela tevê estatal alemã ARD sobre as consequências do bombardeio da Iugoslávia pela Otan. No documentário, várias pessoas contestam as acusações contra as tropas sérvias, há corpos de civis sérvios mortos pelos ataques, massacres de sérvios por terroristas albaneses e até o depoimento de um general alemão se dizendo “envergonhado” com o apoio de seu governo aos bombardeios. “E isso é apenas um átomo de verdade no oceano de mentiras contra meu país. No Ocidente, há uma completa escuridão na mídia quando se trata da Iugoslávia, porque as redes globais receberam a tarefa de ser um instrumento de guerra, desinformando o público”, acusou o homem que ficou conhecido como o “carniceiro dos Bálcãs”.

Finalmente, manejando habilmente a terminologia jurídica, Milosevic afirmou que foi preso ilegalmente por um governo “fantoche” (o de Belgrado), que agia sob pressão do Ocidente, e que os direitos que lhe são previstos nas convenções internacionais estão sendo violados. “Vocês querem fazer uma competição de natação amarrando meus braços e minhas pernas”, comparou. “Acusam toda a nação sérvia. Todos os cidadãos, que elegeram seus representantes em eleições diretas, estão sendo acusados aqui. A promotoria está acusando a população sérvia de ter me apoiado”, declarou o ex-presidente, que durante muito tempo foi realmente amado por boa parte de seus concidadãos. Milosevic, que governou a Sérvia entre 1987 e 1999, até ser deposto por uma revolta popular, se consolidou no poder manipulando os sentimentos nacionalistas dos sérvios. Inicialmente contra os albaneses de Kosovo, que são 90% da população daquela província, e depois atiçando a minoria sérvia na Croácia e na Bósnia. O desmembramento da antiga Iugoslávia e a guerra civil, entre 1992 e 1999, provocou a morte de 250 mil pessoas e cenas que não se viam na Europa desde a Segunda Guerra. Há outros indiciados pela “limpeza étnica”, como o líder dos sérvios da Bósnia, Radovan Karadzic e o general Ratko Madlic, ambos foragidos. De qualquer forma, falta muita gente em Haia, e não são apenas sérvios. Massacres e “limpezas étnicas” foram cometidos também por croatas e bósnios. Milosevic pode pegar prisão perpétua pelos seus crimes, mas tem muita bala na agulha para embaraçar seus acusadores.