O policial, que conseguiu fugir das Farc após oito anos em cativeiro, narra os momentos mais dramáticos do seqüestro

O policial colombiano Jhon Frank Pinchao Blanco, 37 anos, foi seqüestrado pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em novembro de 1998 e agonizou no cativeiro durante oito anos e meio. Em seu livro Mi fuga hacia la libertad (Minha fuga para a liberdade – Editora Planeta), lançado recentemente na Colômbia, Jhon conta como ocorreu sua captura pelos guerrilheiros na província de Mitú e narra detalhes da tentativa fracassada de fuga dos também reféns Ingrid Betancourt, senadora e ex-candidata à Presidência da Colômbia, e Luis Eladio Pérez, exsenador. Num relato emocionado, ele revela como conseguiu fugir, em abril do ano passado. As Farc, formadas em 1964, são a maior guerrilha esquerdista da América Latina, com mais de 17 mil combatentes, lotados em 40% do território colombiano. No início do ano, com a mediação do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, os insurgentes libertaram três seqüestrados, entre eles a ex-candidata à vice-Presidência da Colômbia, Clara Rojas, que teve um filho, Emanuel, no cativeiro. Estima-se que as Farc tenham seqüestrado cerca de sete mil pessoas nos últimos 12 anos, e mantenha aproximadamente 800 reféns até hoje.

 

JOSÉ MIGUEL/JMG

"As Farc conseguiram meu telefone e ligavam sempre dizendo que iam me matar e agredir a minha família"

COLOMBIA'S PRESIDENCY/AP/IMAGEPLUS

"O guerrilheiro encurralou Ingrid, mas ela conseguiu afastá-lo com uma bofetada. Depois, saiu correndo. Ele ficou furioso"

ISTOÉ – Qual foi a situação mais difícil que enfrentou no cativeiro?
Pinchao

Estar preso a uma corrente durante as 24 horas do dia era o pior. Ficávamos acorrentados em grupo durante a noite, com outros dois reféns em cada extremo da corrente. Durante o dia, não ficávamos presos uns aos outros, mas continuávamos com a corrente no corpo. Não podíamos tirá-la para nada, nem mesmo para tratar os ferimentos provocados pelo contato do ferro com a pele. Essas correntes eram as piores torturas físicas que sofríamos. Mas a maior tortura moral é ser privado da própria liberdade. Esta é a pior que um ser humano pode enfrentar.

ISTOÉ – Sofreu ameaças de morte?
Pinchao

No cativeiro não sofri ameaça de morte, mas depois que consegui fugir, sim. Os guerrilheiros das Farc conseguiram o telefone da minha casa e me ligavam sempre, dizendo que iam me matar e agredir a minha família. Mas nunca chegaram a ir até lá. E as ameaças eram só por telefone. Hoje, por medida de segurança, recebemos proteção especial da polícia.

ISTOÉ – Você conta em seu livro o episódio em que um guerrilheiro tentou estuprar a senadora colombiana e ex-candidata à Presidência Ingrid Betancourt. O que aconteceu?
Pinchao

O guerrilheiro é conhecido como Mauricio Pata Grande. Numa ocasião, Ingrid se dirigiu a um dos banheiros improvisados no acampamento e ele a seguiu. Ele a encurralou, mas ela conseguiu afastá-lo com uma bofetada. Depois, saiu correndo. Ele ficou furioso. A partir daí, começou a buscar motivos para se vingar de Ingrid e sempre a agredia verbalmente.

ISTOÉ – Havia algum tipo de castigo para os guerrilheiros que tentavam prejudicar ou fazer algo contra os reféns?
Pinchao

Não. Se eles faziam algo ficava por isso mesmo. Não havia nenhum tipo de punição por parte das milícias mais poderosas. Apesar de a ordem ser de que não usassem palavras grosseiras para falar conosco, ainda assim, havia uns que não cumpriam essa norma. Alguns eram muito agressivos.

ISTOÉ – Como era o dia-a-dia no cativeiro?
Pinchao

O cativeiro é a perda de toda a liberdade. Só podíamos comer, tomar banho e caminhar se a guerrilha quisesse. Tínhamos que obedecer rigorosamente o que eles nos mandavam fazer, quando fazer e como fazer. De segunda a sexta, das 5h às 6h, escutávamos um programa de rádio que transmitem por uma emissora chamada Antena 2 de RCN. Por ela, os familiares dos seqüestrados enviam palavras de força. Na madrugada do domingo, é transmitido pela rádio Caracol o programa As Vozes do Seqüestro, dirigido por Herbin Hoyos Medina, que também leva mensagens de parentes e amigos aos reféns. Logo após o programa, um guerrilheiro abria os cadeados que trancavam as correntes com as quais dormíamos, aí recebíamos o café da manhã. Ao meio-dia, tinha o almoço. Tomávamos banho de tarde e às 17h nos davam comida. Às 18h, tínhamos que estar deitados para dormir. Pelo menos, eles nos deixavam tomar banho todos os dias. Mas me sentia como se estivesse em um campo de concentração.

ISTOÉ – Como eram esses “campos de concentração”?
Pinchao

Eram casinhas de madeira, com mais ou menos 60 pessoas dentro. Não tinha água nem luz, e havia arame no teto, para impedir fugas. Dormíamos em camas improvisadas feitas com varas de madeira e fibra de uma árvore chamada chonta. Mas essa fibra machucava, então colocávamos folhas de palmeira, que serviam de colchão. Cobríamos as folhas com um plástico, além do lençol e uma coberta. Mas como essas "camas" davam muita dor nas costas e nos ossos, alguns preferiam dormir em redes feitas de uma tela impermeável. Ingrid era assim. Ela dormia sozinha na rede, enquanto os policiais e militares apreendidos dormiam de dois em dois, nas camas. Só os prisioneiros americanos que não aceitavam dormir com alguém ao lado. Ficávamos ali o dia todo, e ao lado havia um pátio onde podíamos circular um pouco. Mas no fim da tarde, que era a hora de deitar, tínhamos que voltar para dentro e ser acorrentados para dormir.

ISTOÉ – Não havia nada para fazer?
Pinchao

A única distração que tínhamos era ficar fabricando objetos com coisas que encontrávamos na selva. Os guerrilheiros construíram uma quadra de vôlei para eles, e nos chamavam para jogar quando tinham vontade.

ISTOÉ – Como era a comida?
Pinchao

Quase diariamente tinha um feijão horrível para comer. Cada um de nós tinha uma vasilha própria com capacidade para mais ou menos um litro, e eles nos serviam a comida. E, às vezes, quando havia algo mais saboroso além do feijão, eles faziam questão de jogar o feijão em cima para arruinar a comida que havia.

ISTOÉ – Havia banheiros?
Pinchao

Os banheiros eram buracos no chão de terra, ao lado da casa, e havia uma espécie de quarto de madeira com um chuveiro frio, ao lado dos buracos. Quem precisasse ir ao banheiro depois das 18h, hora de dormir, tinha que pedir autorização da guerrilha e ser guiado até os buracos. Certa vez, a Ingrid chamou um dos guerrilheiros para desamarrá- la, pois queria ir ao banheiro. Como eles não ouviram, ela pegou uma lanterna para tentar chamar a atenção, e foi repreendida e xingada pelos guerrilheiros. No dia seguinte, ela perguntou a um dos guerrilheiros quem era aquele que estava no turno da noite anterior. Por coincidência, era o mesmo que tentou violentá-la. Ela o agarrou pelo pescoço com força, sem medo, e pediu respeito.

ISTOÉ – Você chegou a perder as esperanças de voltar à liberdade?
Pinchao

Cheguei a pensar que jamais conseguiria escapar, principalmente nos primeiros dias em que fiquei confinado, pois vi que era muito difícil sair dali. Além da estrutura, também seria difícil fugir porque eles retinham os nossos sapatos todos os dias. Ficávamos descalços. Para suportar aquilo, eu só pensava na minha família, que eu nunca perdi as esperanças de reencontrar.

ISTOÉ – Eles costumavam enviar provas de vida aos seus familiares?
Pinchao

Sim, fizeram isso nos primeiros anos, regularmente, mas depois deixaram de enviar. E foi assim que meus familiares tiveram que suportar as coisas, sem provas de sobrevivência durante mais de três anos. No cativeiro, nós, reféns, só podíamos contar uns com os outros. Com alguns dos seqüestrados criei um laço de forte amizade.

ISTOÉ – Como foi a sua fuga?
Pinchao

Comecei a considerar a idéia de quebrar a corrente que tínhamos que usar diariamente e que era atada a uma outra corrente que prendia um refém ao outro durante a noite. Pouco a pouco fui torcendo o ferro e cheguei a amarrá-la em um pedaço de madeira para poder torcer melhor. Quando consegui arrebentá-la, dei um jeito de atar as duas pontas, para que ninguém percebesse, nem meus companheiros de cativeiro. Quando decidi fugir, consegui pegar um galão que utilizávamos para guardar água dentro da casa, duas agulhas imantadas para fazer de bússola, uma colher e um isqueiro; quando a noite chegou e só havia um guerrilheiro fazendo a ronda, consegui escapar para a selva. Como a única maneira de sair de lá era pelo rio, o galão cheio de água me ajudou a boiar, pois eu não sabia nadar. Fui levado pela correnteza até não agüentar mais e, quando avistei uma margem possível de chegar, fiz um esforço sobre-humano para alcançá- la. E assim os dias foram passando. Durante o dia eu era levado pela correnteza, e de noite dormia na selva. Comia frutas e plantas, tomava muita chuva e estava muito machucado. E os insetos da selva só pioravam o ferimento, pois não deixavam de rondar. Até que a dor se tornou tão insuportável e a ferida tão inflamada que a pele da minha mão esquerda começou a soltar.

ISTOÉ – Quantos dias passou assim?
Pinchao

Foram 17 dias. Achei que não fosse agüentar, até que avistei um homem vindo de barco. Como aquela parte da selva há dias era sobrevoada por helicópteros, eu sabia que já não estava mais no território da guerrilha, e que quem estivesse lá poderia me ajudar. E estava certo. O homem me levou até o povoado mais próximo, onde havia um posto policial que me deu comida e roupas limpas. No começo ficaram um pouco receosos, mas, quando ligaram para Bogotá para informar minha identidade, viram que eu realmente tinha fugido do cativeiro. Me levaram no mesmo dia para San José de Guaviare, e de lá pegamos um avião para Bogotá.

ISTOÉ – Foi difícil se reintegrar?
Pinchao

Sim. Pouco a pouco consegui, mas não deixo de pensar nos meus companheiros que ficaram presos. Espero que em breve eu possa vêlos novamente, para rirmos, comermos juntos uma comida decente, deixar para trás o sofrimento e lutar para que essa história não volte a se repetir para ninguém da Colômbia nem do mundo.

ISTOÉ – Quando surgiu a idéia de escrever o livro?
Pinchao

Durante a fuga. Conforme ia atravessando a selva, pensava que as pessoas tinham que saber o que eu passei nesses anos todos. E o livro serviu para que eu me curasse das memórias tristes de quando vivi preso, e da dor que me causou o seqüestro.

ISTOÉ – Seu filho, hoje com oito anos, nasceu enquanto você estava seqüestrado. O que sentiu quando o conheceu?
Pinchao

Foi uma grande felicidade para mim e para toda a minha família. Tudo o que ficávamos sabendo sobre os nossos parentes era pelo rádio, nunca tivemos contato com nenhum deles. Quando o meu filho ficou um pouco maior, eu escutava as mensagens dele, a voz dele. Em uma ocasião, ele cantou uma música para mim. Era Las pirañas, uma canção popular colombiana. Fiquei muito emocionado ao escutá-lo e, ao mesmo tempo, triste por não poder estar com ele.

ISTOÉ – Que atividades exerce hoje?
Pinchao

Continuo vinculado à Polícia Nacional da Colômbia, mas com atividades apenas na área de direitos humanos, e não mais como guarda da polícia civil. Há poucos dias, estive na Espanha, num congresso voltado para as vítimas do terrorismo. Foi muito válido, pois no princípio os europeus não acreditavam na minha história, não acreditavam em mim. E, no final, passaram a dar crédito a tudo que eu contei. Eles achavam que era tudo mentira, que eu não era um fugitivo.

ISTOÉ – O que pensa das Farc?
Pinchao

Eles perderam seu norte e deveriam repensar a sua forma de agir. Já devem ter percebido que a Colômbia manifestou uma profunda rejeição a toda essa geração de violência. A guerrilha nunca teve apoio local e a única coisa que conseguiu foi intimidar a população. Está em regiões afastadas do País, onde a população é obrigada a ajudar, com medo de ser assassinada. Eu não desejo a ninguém o que fizeram comigo. Nem aos meus inimigos.